Anderson França

É escritor e roteirista; carioca do subúrbio do Rio e evangélico, é autor de "Rio em Shamas" (ed. Objetiva) e empreendedor social, fundador da Universidade da Correria, escola de afroempreendedores populares.

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Anderson França

A água das torneiras do Rio vem com cor de terra, cheiro de bunda, gosto de desgraça

O Carnaval já foi o momento do ano para o sexo em grupo, agora é a festa do mijo em grupo

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Todo mundo sabe que o carioca espera o ano inteiro o Carnaval pra mijar em grupo na rua. Geralmente mijam um mijo solitário. Rapidinho, proibido. 

Mijo fortuito. Mijo de relance. 

O Carnaval já foi o momento do ano para o sexo em grupo. Agora é a festa do mijo em grupo. 

Enquanto do carioca jorrar mijo, e não água da Cedae, tudo certo. A água que sai das torneiras da distribuidora de água do Rio vem com cor de terra, cheiro de bunda, gosto de desgraça. Ou cor de desgraça, cheiro de terra, gosto de bunda. Isso aí é uma praga do Egito. 

Se o carioca mijar a água da Cedae que bebe, aí é a barbárie. Tem tutorial de carioca mijão folião, no Youtube. Bota o trabuco pra fora, na frente das tia, dos tio, e vráu. Dichava a cachoeira. A outra, no meio da rua, na zona sul do Rio, no meio dos bloco, a querida abaixa e saca a carne mijona.  

E ri, pra câmera. 

Puro suco.

Por precaução, vai de capa de chuva. E de boca fechada, porque as pessoas também animam mijar na boca umas das outras. Canta o samba pra dentro.

A Cedae se defende, dizendo que o povo não sabe DEGUSTAR a SAFRA de água com terroir refinado, NOTAS DE CARNIÇA e tons amadeirados de TÔCO DE PAU QUEIMADO. 

E tem gente que defende que mijar em público deixou de ser contravenção penal, ou seja: quando tem reunião de terroristas pra escolher lugar pra atacar, o Rio nunca entra na lista. Os caras não atacam o Rio, porque até terrorista tem sentimento humanitário. Já tamo muito na merda.

E domingo teve um esquenta pro Carnaval 2020. Carnaval que promete Lázaro Ramos vindo de Jesus, Mangueira protestando na avenida, arrastão, corote, piscina de plástico rasgando com tanta gente dentro, em Saquarema, e a água de bunda, da Cedae, permeando esse carroussel de sensações que ficará girando em nossas memórias. Nem começou, o Carnaval 2020 já nos marcou.

No fim do evento do Bloco da Favorita teve mini dia do juízo final. Arrastão, captação de celulares para venda no camelódromo no dia seguinte, crowdfunding compulsório, Elza mermo, meteção, dedo na cara, spray de pimenta, socorro meu Deus, e, claro, no meio disso tudo, gente mijando.

E rindo.

O Rio tá aí. Estado puro da arte. 

Nem me surpreendo mais, que dá carga mental. 

Ilustração para a coluna de Anderson França
Dinho/Folhapress

Aliás, tema muito discutido nesses dias por causa de um estudo publicado, onde mulheres relatam as frases que mais ouvem de seus companheiros e, também, companheiras. Eu fico pensando em como debater isso é difícil, uma vez que, considerando que todo o Ocidente é fundado em uma religião cuja origem, abraâmica, também influencia outras duas grandes religiões, e em todas elas a mulher é colocada como gestora da vida, querendo, ou não. Milênios de definição dos papéis da mulher, e então, dentro do Ocidente, mulheres começam a debater essa imposição histórica, e isso tem, não sei, um século, se muito?

De modo que eu fui criado por uma mulher, logo ali, ontem, no fim do século 20, que não me proporcionou autonomia. E hoje, eu aumento a carga da minha companheira. A pergunta que me faço, como educador, é: quem vai promover a educação das pessoas sobre isso? Se por um lado temos um problema, por outro, parece que temos pessoas que apontam, mas não querem colocar a mão no processo de educação. E acham, de forma ingênua, que homens, e mesmo mulheres que reproduzem machismo, vão mudar sozinhos um processo respaldado por milênios de tradições. Tem aí um dos grandes desafios do feminismo. Não apenas pensar o problema. Mas encontrar metodologias.

Fico pensando em carga mental porque, nesse momento de pré-Carnaval, povo se mijando, dando Elza, só penso nele, fragilzinho, no canto da sua sala no Leblon, o prefeito Marcelo Crivella

Crivella vai dar coletiva dizendo que o carioca aumenta sua carga mental. Que o carioca faz promiscuidade nos dias de Carnaval, e até nos dias da Vigília. Que os carioca vão fazer um bloco de carnaval em frente ao Templo Maior em Del Castilho, o Bloco Me Chama de Ovelha e Soca o Cajado. 

A gente tá passando dos limites com o Crivella.  Mas Satanás é assim. Ele passa dos limites.

Nós que já estamos no segundo ano de Bolsonaro, precisamos ser o povo que vai promover uma revolução nos únicos dias em que não dá preguiça sair de casa. E devemos protestar por tudo, principalmente pelo retorno da nossa alegria marota, nossa galinhagem democrática, porque quem transa não incomoda a vida alheia. Esse será o Carnaval da Revolução. Jesus negro, mijo liberado, Les Miserabiles em 150 bpm, Dilma vencendo Oscar, a gente renasce das cinzas do Derby Vermelho. O mundo ruindo, mas a gente unindo barbárie e festa. Vamos lutar, suar e mijar juntos.

Make Piranhagem Great Again.

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