Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Oprah fez discurso presidencial, mas eleição é mais do que show business

Crédito: Paul Drinkwater/Associated Press
Oprah Winfrey durante discurso no 75º Globo de Ouro

A grande dama subiu ao palco como fazem as rainhas. Os súditos ovacionaram. Vestia preto. Não o pretinho básico das socialites, mas o preto-luto do movimento "Time's Up". Atrás dos grandes óculos, seriedade, sobriedade, solenidade. Oprah Winfrey estava lá porque fez história.

Sua fala do trono manejou timing, emoção e audiência. Não foi agradecer o reconhecimento pelo trabalho duro dos que vêm de baixo —coisa que os Estados Unidos adoram dizer que fazem. Oprah fez, como o Twitter registrou, um State of the Union, um discurso presidencial. Parecia o de posse.

A abertura —a menininha, filha de empregada doméstica, vendo na TV o primeiro negro receber um Globo de Ouro— foi cinematográfica. Oprah chamou a si dupla herança, a dos negros que vencem na vida, como Sidney Poitier, e a das mulheres pobres e humilhadas, como sua mãe, que não se dobram.

A retidão de caráter talvez seja o maior dos contrastes entre a rainha e o presidente. Oprah se lançou a exemplo para novas menininhas. Foi além dos fins —você também pode vencer na vida— e discutiu os meios —não vale vencer prejudicando os outros. Não vale racismo, machismo, desigualdade. Não vale destruir a imprensa e o debate público. Apresentou um modelo moral de justiça e solidariedade.

E, à maneira de líderes como Martin Luther King, Jesse Jackson e Barack Obama, encerrou como num culto, com a entonação subindo num chamado à ação.

Oprah não o citou, mas Trump estava lá, em negativo. O presidente perdeu o show, pois enquanto se coroava a rainha, sua dinastia sofria bombardeio escrito. Não é preciso recorrer a Hamlet para saber que há algo de podre na Casa Branca, mas em "Fire and Fury: Inside the Trump White House" (fogo e fúria: por dentro da Casa Branca de Trump), Michael Wolff ajuntou todos num só pacote-bomba.

O título resume a impetuosidade trumpiana, seu "falem mal, mas falem de mim". Em Washington, não se fala de outra coisa. Sob frio tão inclemente quanto a caneta de Wolff, os que adoram a sala de visitas de Oprah fizeram fila nas livrarias para espiar a cozinha suja da Trumplândia.

Fogo e Fúria - Por Dentro da Casa Branca de Trump
Michael Wolff
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Como o discurso de Oprah, o livro sobre Trump já fez história. Narra o dia a dia de uma Casa Branca caótica e patriarcal, regida por um presidente errático, infantil, despreparado. É um passeio pelos bastidores, como se o personagem-escritor de "House of Cards" publicasse seu manuscrito sobre os Underwood.

O pampeiro em torno dos defeitos de Trump é velho, denunciado por políticos e intelectuais e debochado por comediantes. A diferença é que a voz agora é de seu ex-estrategista, Steve Bannon, um doutor Frankenstein que ideou a criatura e perdeu controle sobre ela. Bannon já se retratou, mas a mancha do leite derramado ficou no tapete do Salão Oval.

Tuiteiros logo compararam a rainha negra com o presidente e lançaram a veterana contra o aprendiz nas próximas eleições. Que o debate político gire em torno de estrelas de TV diz muito sobre a democracia local. E apenas contrapô-las pouco ajuda a entender o que se passa.

Melhor é escavar o passado, defende Corey Robin em "The Reactionary Mind: Conservatism from Edmund Burke to Sarah Palin" (a mente reacionária: conservadorismo de Edmund Burke a Sarah Palin, Oxford University Press, 2011), tido como uma profecia da eleição de Trump. Uma nova edição, com o atual presidente no lugar de Palin, saiu junto com o livro de Wolff. Mas é bem diferente.

Robin recapitula as origens do conservadorismo —uma reação à Revolução Francesa— e mostra como sua celebração de mercado e guerra, seu racismo e xenofobia, seu populismo e defesa de elites, se enraizaram na política, cultura e costumes norte-americanos.

Aí é que Trump se ancora. Oscilando entre a língua do privilégio da elite endinheirada e o populismo nacionalista, ao gosto do americano médio, sustenta-se num oximoro: um "movimento elitista de massas". Seu sucesso nasce de sua inconsistência.

O conservadorismo se tornou plástico, adaptável, moderno e inteligente. Trump pode aparecer como um tonto na cartilha Oprah, mas se ancora na bíblia da América profunda, que compartilha suas ideias, ideais e ignorâncias.

O discurso da rainha e os livros sobre o presidente não atestam Américas antagônicas. O país é um só. Os apressados em lançar Oprah à Presidência talvez ignorem que para vencer eleições não basta controlar o show business. Gente como Steve Bannon sabe disso. Tomara que apoiadores de Luciano Huck e similares também o percebam.

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