Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Marielle não teve festa de aniversário

Prisões de mandantes, se vierem, poderão aplacar o irremediável das perdas

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Este governo demorou meio ano para ferver o que o antecessor congelou por quatro. A semana de avanços na investigação dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes foi a do aniversário dos 44 anos que a vereadora não pôde comemorar.

Em vez de festa, houve luto. A volta à tona do caso que nunca afundou no esquecimento reavivou o drama para pais, filha, irmã, viúva, amigos de uma das vítimas. E certamente afetou a família da outra, embora pouco se saiba disso —a imprensa raramente cobre os enlutados com a morte do motorista.

As prisões de mandantes, se vierem, poderão aplacar, nunca suprimir, o irremediável de ambas as perdas.

Marielle Franco, assassinada no Rio em 2018 - Renan Olaz-24.abr.17/CMRJ

O espantoso no desvelamento não foram as lágrimas dos enlutados, mas a frieza dos perpetradores.

O depoimento de Élcio de Queiroz faz lembrar "A Sangue Frio", de Truman Capote. No romance-reportagem, sobre crime no interior do Kansas nos anos 1960, o ato de assassinar não perturba os assassinos. Queiroz expressou a mesma insensibilidade.

Suas 2 horas e 36 minutos de depoimento deram 72 páginas novelescas. Narrou sem culpa, pena ou arrependimento a sequência de pequenas decisões que encerraram duas vidas.

Sua única nota emotiva foi sobre si mesmo, ao lembrar os cartuchos vazios chovendo sobre a própria cabeça e o frenesi da rajada espoucando nos ouvidos.

O depoente detalhou com precisão as peculiaridades da arma e seu possível destino romanesco: "Ele (Ronnie) serrou ela todinha, pegou a embarcação lá na Barra da Tijuca, foi numa parte mais funda (...) que tinha 30 metros e jogou ali".

Élcio duvidou da veracidade do dito porque Ronnie "tinha muito carinho por essa arma".

Além deste amor entre o atirador e sua MP5, o afeto é amálgama entre muitos dos mencionados. São parentes, vizinhos, amigos, como o delator e o atirador, conhecidos há 30 anos, desde quando um era PM e fez do outro, então na Polícia Civil, padrinho do filho —"a nossa relação é nesse sentido, de família".

O depoimento desenha um modo de vida no qual relações afetivas, oportunidades financeiras e uso da violência se entrelaçam. As armas são objeto de fetiche, o assassinato é só mais um trabalho e a morte é uma rotina.

Neste meio viceja todo tipo de negócio suspeito, como o de um de seus companheiros que "faliu um cassino no Paraguai, estourou o dinheiro do sogro".

O enredo do assassinato político desvela pedaço largo e cinzento da sociedade brasileira, povoado por personagens de apelidos que evocam a ficção: Gato do Mato, Hulkinho, Piroca, Bolota, Orelha. Nesse mangue, o bolsonarismo tem raízes bem fincadas.

Uma gente que clama por liberação do porte de armas, redução da maioridade penal e pena de morte. Uma pauta que ainda não lograram implementar, mas da qual não desistem, obcecados por reproduzir a parte caubói dos Estados Unidos que tanto admiram.

Nela, os protagonistas do livro de Capote foram para a forca. Os assassinos de Marielle e Anderson não irão. Para sorte de Ronnie e Élcio, aqui não é o Kansas e a Justiça não segue a lei de talião.

Depois de sete anos pulando entre cadernos, deixo este espaço para passar um semestre na Universidade Harvard. Muito obrigada à Folha, em especial às equipes das editorias que me acolheram. Sou grata sobretudo a quem teve a paciência de me ler. Até outra hora.

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