Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

iLua

Meu Instagram se enche de fotos que lembram um tremoço colado numa lousa

Um amigo de férias manda fotos da fazenda: uma paisagem de bangue-bangue ali onde Mato Grosso faz fronteira com Idaho. Primeiro rio dourado ao pôr do sol. Depois uma coruja no mourão de uma cerca. Depois um boi preto que ele me informa ser da raça Angus —nunca tinha visto no pasto, só no prato. Por fim, um pontinho branco mixuruca no céu, junto à legenda “Lua maravilhosa!”. Dou-me conta da ironia: Steve Jobs dominou a terra, mas seu legado ainda está longe de enquadrar a Lua. O iPhone elege governos e derruba regimes, invade privacidades e sorve o tempo de milhões de escravos nos quatro cantos do globo, mas não consegue tirar uma mísera foto do nosso belo satélite natural. 

A falha é tão surpreendente que a humanidade parece não se conformar. Entra ano, sai ano e a gente continua tentando. Quando surge no céu da cidade uma dessas luas hipnóticas, uma bola gigante que os gases do efeito estufa gentilmente tingem de laranja (uma contrapartida social do apocalipse?), meu Instagram é invadido por dezenas de fotografias pífias que lembram, na melhor das hipóteses, um tremoço colado numa lousa. (Na pior das hipóteses: o farol de uma Mobilete a 300 metros de distância, vindo em nossa direção por uma estrada de terra —numa noite sem lua).

Ilustração Antonio Prata
Ilustração Antonio Prata - Adams Carvalho

Ao constatar a inaptidão celu-lunar, meu lirismo meio intelectual, meio de esquerda, se agita. Ensaio um arroubo ludista, uma cruzada tipo “poetas contra a tecnologia”, como se a Lua fosse a última reserva de pureza, alvíssimo astro a salvo de algoritmos, diante do qual se curvariam os iPhones, afônicos. Não acredito, porém, em nada disso. 

A ciência não é inimiga da Lua, muito menos da poesia. As pegadas do Neil Armstrong não solapam o solo do Louis, em “Moon River”. Tanto o foguete quanto o trompete são filhos da engenharia. Que belo hai-kai é um microchip. Que soneto perfeito é um motor à combustão. E a dramaturgia exata das engrenagens do relógio? 

No livro “Desvendando o Arco-íris” (Cia das Letras), Richard Dawkins rebate a tese muito difundida de que a ciência é uma chata, pois substitui o mistério e a poesia por fórmulas e planilhas. Dawkins mostra como cada explicação da ciência nos leva a questões ainda mais profundas e poéticas. 

Eu é que não queria ter nascido em, sei lá, 1365, olhar pra cima e perguntar: que diabos é essa bola branca? O que ela faz durante o dia? Por que muda de formato e tamanho? E essas manchas acinzentadas? Serão montanhas? Rios? Castelos? O esqueleto de um dragão? Será que mora gente ali? “Não fala bobagem”, diria meu amigo em 1365, “Isso não é bola, não, isso é luz! O céu preto é um lençol que Deus coloca em volta da Terra toda noite pra gente poder dormir. As estrelas e a Lua são uns furinhos que Deus fez pro caso de alguém precisar ir se aliviar no mato.” “E por que a Lua muda de tamanho?”, “Uai, vai ver tem dias que Deus não estica bem o lençol, aí o furo fica meio dobrado”.

A primeira palavra que eu falei foi lua. A primeira palavra que eu escrevi, também. A primeira sugestão do Google quando você digita “how to photograph” é “how to photograph the moon” e a segunda é “how to photograph the moon with iPhone”. Curiosamente, contudo, quando você escreve “como fotografar a”, em português, a frase “como fotografar a lua” fica em segundo. Em primeiro surge “como fotografar a tela do Mac”. É, pensando bem, talvez Steve Jobs já tenha conquistado a Lua. 

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