Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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A doutrina do 'f.d@-se!'

O bolsonarismo é o gozo da desistência e o triunfo da incapacidade

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Foi antes da pandemia. Terminada a apresentação musical na escola, alguns pais e mães levamos as crianças para comer bolo num café ali por perto. Uns vinte metros adiante um ônibus quebrou, fechando a rua e formando um pequeno engarrafamento.

Dentro de seu carro, então, um cidadão —acho que era um “cidadão”, perdoe-me se acaso fosse um engenheiro civil formado, ó, bacharel— mete a mão na buzina e não solta. Um segundo, dois, três, quatro, dez, quinze. Lá pelo vigésimo segundo, um valente grupo de mães vai até o carro do infeliz e explica que não adianta buzinar: tem um ônibus quebrado ali na frente.

Sem abrir a janela o sujeito rebate a informação numa concisão de poeta: “Foda-se!”. Naquele instante eu entendi a essência do bolsonarismo.

Ilustração de pessoa com capuz na cabeça quase todo fechado, só é possível ver o nariz e a boca dela. Nas mãos, há uma buzina antiga levantada na altura do rosto, prestes a ser acionada
Adams Carvalho

O comunicado das mães tinha uma abordagem, digamos, científica da situação. Estavam tentando dizer que ao ouvir a buzina incessante o motor do ônibus não voltaria a funcionar.

O cara do carro, contudo, não queria resolver o problema do engarrafamento. Ele queria só jogar toda a sua indignação no ventilador. Mesmo que com isso ele piorasse a situação de todos em volta —inclusive a própria, pois não era surdo.

O bolsonarismo se vende para os seus como movimento empoderador e libertário, mas na real é profundamente melancólico: é o gozo da desistência, a celebração da impotência, o triunfo da incapacidade. Buzinar para o ônibus quebrado. “¡Si hay solución, yo soy contra!”. “Foda-se!”.

Amazônia? Desmonta o Ministério do Meio Ambiente, desmata, queima, anistia, “foda-se!”. Segurança pública? Dá uma arma pra cada um, 550 balas por mês e “foda-se”! Radar nas estradas? Cadeirinha pra criança pequena? Tira tudo e “foda-se”!

Pandemia? É “chuva”, vai molhar todo mundo, “foda-se!”. (O que é o “E daí?” senão um “foda-se!” de salão? Um“foda-se!” fora do ambiente descontraído e moleque de uma, por exemplo, reunião ministerial?).

Na última revista Piauí, João Moreira Salles publicou um texto brilhante sobre a fixação do Bolsonaro com a morte: o único assunto que o excita.

Não me parece que estes vinte e tantos por cento que se declaram “fechados com o mito” necessariamente salivem diante do sangue alheio, como o chefe.

Mas, talvez, desiludidos com os resultados que a república, a democracia e o Estado de direito trouxeram ao Brasil, e sem perceber que é do fortalecimento das instituições capengas, não da sua demolição, que virá uma possível melhora, sintam o comichão de pegar na marreta. Ou numa arma. Ou tocar a buzina. (Um texto excelente do Renato Janine Ribeiro aprofunda-se neste assunto)

O que os seguidores cegos do capitão não percebem, nem ele, é que toda vez que a gente fala “foda-se!”, na verdade está dizendo “foda-me!”.

A Amazônia, o STF, a democracia, os direitos humanos, uma melhor distribuição de renda, a luta contra o racismo, a homofobia e o machismo beneficiam a todos nós. De direita, de esquerda, liberais, socialistas, héteros, gays, brancos, pretos, evangélicos, umbandistas, o MTST e a Avenida Faria Lima.

O alívio oferecido por essa necropolítica é o alívio do suicida. Da terra arrasada com a qual o bolsonarismo sonha não brotará um mundo novo. Crescerão apenas as ervas daninhas que há séculos impedem o nosso desenvolvimento: agora com muito mais força, pois sem ter que disputar espaço com a extinta flora da civilização.

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