Eu queria, primeiramente, parabenizar o tomate. Escreverei com maiúscula, o Tomate, como quem diz o Homem referindo-se à humanidade, pois parabenizo o tomate enquanto espécie. Congratulo-o pela eficiência de sua trajetória evolutiva, dado que o ocorrido foi uma manifestação claríssima de um traço desenvolvido por milhões de anos através da seleção natural.
Um traço, não, vários, pois há de se considerar: a cor vermelha, capaz de destacar o fruto em meio ao denso verdume das matas centro-americanas, chamando a atenção de mamíferos e outros animais; há de se considerar o dulçor, agradável às papilas gustativas destes mesmos animais; até mesmo a altura do tomateiro, entre um e três metros, é digna de nota, pois perfeita para estimular primatas feito você e eu a colher o tomate na floresta —mesmo que há séculos o colhamos no mercado. A água também deve ser apontada como vantagem evolutiva, pois, como um cacto ou uma melancia, em época de seca um tomate é capaz de matar a sede de uma pessoa. Ou de um macaco. Ou de um tucano. (Será que tucano come tomate? Daria uma linda foto na National Geographic).
Tomate vem do asteca "tomatl", que significa "fruto inchado" ou "água gorda" ou "coisa gorda", segundo explica a Wikipédia —mas não explica se as três possibilidades derivam da nossa ignorância sobre a língua asteca ou se, entre os extintos indígenas mexicanos, havia uma mesma palavra para "fruto", "água" e "coisa", coisa de que eu duvido muito, pois um povo jamais chegaria tão longe com tal bololô semântico.
Se bem que nós fomos à Lua e usamos a mesma palavra pra manga de camisa e pro fruto amarelo, pro inseto nojento e pra mercadoria que não é cara; um homem chamado João Melão chegou a ser eleito deputado e em Portugal tá assim de Maria Pia. Se bem que quem chegou à Lua foram os americanos e o inglês, me parece, tem menos homônimos do que o português. Se bem que o sobrenome Mellon eles têm. Mary Sink eu não sei. Enfim, deixo aí as questões para os filólogos e os engenheiros espaciais —eu volto pro tomate.
O tomate evoluiu de forma que seu fruto se tornasse atrativo e saboroso ao paladar de diversos animais. Também esses animais evoluíram, paralelamente, de forma a encontrar prazer no tomate. Em troca das calorias do tomate, espalhamos suas sementes através das fezes ou as espargimos por aí ao morder e derramar parte do "fruto inchado" ou da "água gorda" ou da "coisa gorda".
Deixemos as fezes de lado, não apenas por ser assunto pouco palatável, mas porque no meu caso a simbiose evolutiva nutrição do primata x reprodução do vegetal veio mesmo das sementes derramadas —embora "derramadas" não descreva, nem de longe, a forma como o conteúdo aquoso rebentou a finíssima bexiga rubra e lançou-se rumo ao desconhecido.
O desconhecido era um sujeito careca sentado a dois metros de mim, numa outra mesa do restaurante. Milhões e milhões de anos de vida na Terra concentraram-se na seguinte ação: eu mordi um tomate cereja sem fechar totalmente a boca, ele estourou como uma baga de Maria Sem Vergonha e esguichou seu conteúdo numa elipse digna de um profissional da balística. O míssil baboso subiu, passou por cima da cabeça da minha mulher e aterrissou bem no meio do kojákico cocuruto do desconhecido, feito um cocô de pomba num desenho animado.
O careca não viu de onde veio o tiro, mas a mulher dele viu e olhou pra mim. O careca virou o pescoço e olhou pra mim. Agora eu não sei se, depois de parabenizar mentalmente o tomate, eu peço a conta, peço desculpas ao careca ou saio correndo. O careca levanta. Eu saio correndo.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.