Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Relação aberta

Como a poligamia, a monogamia funciona no começo

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Parafraseando Churchill: a monogamia é a pior forma de relação, com exceção de todas as outras. A poligamia foi tentada pelos hippies. Funcionava no começo, até que duas pessoas se apaixonavam. As comunidades acabavam assim, com seus membros saindo, de mãos dadas, dois a dois. Passar a vida solteiro, pescando nas águas agitadas dos aplicativos é exaustivo, além de melancólico. E a monogamia?

Como a poligamia, funciona no começo. Um dia, porém, a paixão passa, o desejo cessa, até que numa reunião de pais, enquanto a professora de música explica a importância da ciranda na socialização infantil, a mulher pensa: "Hmmm... Que delícia que seria 'socializar' com o pai do João Souza...". A professora de artes mostra slides do trabalho do grupo cinco sobre as obras da Frida Kahlo e o marido pensa: "Nossa, eu pegava muito a mãe da Marina Goldenberg...".

Não sei se é só na minha bolha, mas tenho visto um monte de casal abrindo a relação. A regra básica é "faz o que você quiser, contanto que eu não fique sabendo". (Tem também a versão masoquista: "faz o que você quiser, desde que você me conte", mas tratemos aqui apenas dos casos não patológicos).

Acompanho com interesse as aventuras e desventuras dos amigos e amigas que experimentam esta forma de, digamos, descriminalização da traição. Infelizmente, não parece estar dando muito certo. A mulher vai comprar pão e o marido pensa: será que foi na padaria mesmo? O marido recebe um WhatsApp e a mulher imagina: será uma possível amante?

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de S.Paulo no dia 16 de julho de 2023, mostra a pintura de uma mulher e um homem sentados em lados opostos de uma cama.
Adams Carvalho

Tem também o problema das cláusulas (vejam o vídeo hilário do Porta dos Fundos, "Regras do relacionamento aberto"). Um amigo terapeuta de casais diz que as sessões de hoje em dia parecem mais uma consulta a um advogado do que a um psicanalista. Pode pular a cerca no próprio município ou só em outro DDD? Pode com alguém que é conhecido dos dois? Quão conhecido? Se seu marido estudou com o Gui Vieira na segunda série, você pode pegar o Gui Vieira? Só pode ficar com a pessoa uma vez, senão vira um caso? Mas uma vez só é pouco. Mal dá pra pegar "ritmo de jogo". Vamos estipular que pode três vezes? Mas peraí: três vezes com sexo ou se beijar na boca já conta uma vez? E se transar três vezes no mesmo encontro? Cancela os outros dois? Pra finalizar, a pedra no meio do caminho, o maior espinho nesta possível bela flor: o que fazer com o ciúme? Ah, o ciúme é uma convenção burguesa que vem da ideia de posse e deve ser superado. Bonito. Mas como supera?

A ânsia de criar essa espécie de Inmetro da sacanagem me parece revelar algo sobre o nosso tempo. A exposição nas redes sociais trouxe consigo uma exigência de retitude moral que não abarca as zonas cinzentas, as contradições e paradoxos de cada um. A mesma sanha persecutória que faz com que se cancele celebridades por deslizes mínimos em comentários do Orkut em 2007 recai sobre nós, exigindo uma honestidade de santo. É inatingível.

A vida é complicada, o ser humano é cheio de buracos, nenhuma consciência ficaria bonita se fosse possível expô-la no Instagram, sem filtro. Associado a tal ideal ascético há um excesso de sensibilidade, uma postura "floco de neve" que impede as pessoas de arcarem com as consequências da satisfação dos desejos (a culpa, o medo). Daí, talvez, essa tentativa de fazer uma omelete sem quebrar os ovos.

Não seria mais simples uma saída "old school"? As pessoas abrem vez por outra a relação —tendo a delicadeza de não contar nada pro outro. Como já disse Jards Macalé: "A mentira, meus amigos, pode ser o maior ato de amor".

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