Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Câmera sináptica alienígena

A câmera sináptica equivaleria a um detector de mentira, a um soro da verdade

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Parado no sinal, em frente ao Playball da Pompeia, com suas inúmeras quadras de futebol, penso: taí um raríssimo quadrilátero feliz na cidade de São Paulo. Sem muro alto nem morador de rua, sem catraca nem crack, só amigos jogando, suando, comendo churrasco e tomando água de coco ou cerveja.

É então que o OVNI baixa no meu pensamento, junto à tecnologia da "câmera sináptica". Como uma câmera de visão noturna capta o calor, a "câmera sináptica" alienígena seria sensível à concentração e distribuição dos neurotransmissores no cérebro. Faria, à distância, uma espécie de tomografia, não só de indivíduos, mas de grupos. A câmera conseguiria enxergar se uma pessoa ou grupo está feliz (serotonina), bravo ou com medo (adrenalina), satisfazendo vícios, fazendo sexo (dopamina), amando-se ou cuidando das crianças (ocitocina), estudando, lendo ou criando (acetilcolina e glutamato). (Neurologistas indignados com meus probabilíssimos erros, por favor, cartas —cheias de adrenalina, acho— à redação).

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 01 de Setembro de 2024, mostra o desenho de um grupo de pessoas atravessando a rua de uma cidade. Algumas têm a cor da pele azul e outras vermelha. Em primeiro plano, há uma grade branca de enquadramento utilizada em câmeras fotográficas.
Ilustração de Adams Carvalho para coluna de Antonio Prata - 1 de setembro de 2024 - Adams Carvalho/Folhapress

Claro que, como há no cérebro infinitas sinapses ao mesmo tempo e as corredeiras de neurotransmissores se misturam num sem-número de pororocas, a câmera seria capaz de analisar a mistura de todos esses liquidozinhos e mostrá-la através de cores. Quanto mais ligada à paz e à felicidade fosse a mistureba de neurotransmissores, mais próximo do azul claro seria o indivíduo ou o grupo observado. Quanto mais ligada ao sofrimento, à dor, à angústia e ao ódio, mais próxima do vermelho.

Se os ETs olhassem pra baixo, ali no Playball da Marquês de São Vicente com a Nicolas Boer, veriam uma grande mancha azul claro. Se fossem um pouco adiante e sobrevoassem as proximidades do Parque Antártica, numa briga de torcida, veriam uma nódoa cor de sangue.

A "câmera sináptica" equivaleria a um detector de mentira, a um soro da verdade. Se a tivéssemos na Terra e fôssemos fazer uma entrevista de emprego, bastaria dar uma olhada na nuvem vermelha resultante de todos os funcionários atrás de suas baias para sair correndo da empresa. Seria possível ver se uma pessoa te ama ou te odeia a metros de distância. Escolas poderiam ser avaliadas num átimo pelo ranking cromático, capaz de demonstrar não só a abertura pro aprendizado dos alunos, mas com quanta dor ou prazer ele estaria sendo produzido. Uma foto de satélite revelaria a distribuição de felicidade pela cidade de São Paulo. Políticas públicas seriam desenhadas a partir dessa paleta. O PIB ou IDH dos países seriam só o segundo e terceiro índice mais importantes. Seria o fim do populismo e da demagogia.

A "câmera sináptica", porém, poderia cair em mãos erradas. Poderia ser usada por uma ditadura, em drones, para descobrir quem pensa livremente. Quem ri. Quem faz sexo. Quem, em meio à mancha rubra de uma escola militar, está desviando para o azul. Seria o maior pesadelo de vigilância social, deixando a Gestapo ou a Stasi no chinelo.

Abre o farol. Deixo pra trás o quarteirão azul bebê e vou me embrenhando, entre moradores de rua e motoristas enfurecidos, pela vermelhidão da cidade. Imagino o OVNI dando uma rápida espiada pelos arredores, ziguezagueando entre a Pompéia, Casa Verde e Barra Funda e partindo pro espaço em busca de paragens mais aprazíveis.

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