Requerer o inalienável direito de todo ser humano a não se pronunciar sobre a treta da semana —também valendo para a treta do dia, do mês ou do ano. Confirmado este direito, fica consequentemente subentendido que o não pronunciante, aqui pronunciando-se no direito de não se pronunciar, jamais será, em hipótese alguma, diante de seu silêncio, acusado de:
A) Isentão.
B) Passar pano.
C) Estar a serviço ou a soldo de quaisquer partes envolvidas no imbróglio da vez.
Antes das redes sociais, se, sei lá, um irmão esfaqueasse uma irmã em, digamos, Moema, só saberíamos no dia seguinte, pelos jornais. Poderíamos comentar o ocorrido na padaria, tomando café com a caixa Eveline, o taxista Everton e o palmeirense Ari. Você diria "E esse irmão de Moema, hein, pessoal?". A caixa Eveline, o taxista Everton e o palmeirense Ari dariam suas opiniões e pronto, acabou. Ninguém acordava de manhã, lia o jornal e pensava: "Caramba, como vou me posicionar diante da caixa Eveline, do taxista Everton e do palmeirense Ari a respeito dos irmãos de Moema?"
Depois das redes sociais, cada ser humano com conta no X, no Facebook, no Instagram, no TikTok ou em outras dessas padarias intergalácticas sente-se na obrigação de se posicionar. Cada reles mortal vive a vida como se estivesse numa entrevista coletiva na ONU, no Oscar, no Juízo Final. No grupo de zap "Compras réveillon 2017" surgem discussões acaloradas sobre o melhor acordo de cessar fogo entre Israel e Palestina. Nenhuma das partes parece atentar para o fato de que nem Netanyahu nem o Hamas estão no grupo, formado inicialmente para decidir se levaríamos para Boiçucanga leite integral ou semidesnatado.
O que sei eu sobre o Oriente Médio? Sobre a Rússia? Sobre as divergências entre republicanos e democratas na Pensilvânia? Que ânsia ou obrigação é essa de, na fila do quilo ou na sala de espera do dentista, fazer um vídeo ou post resolvendo todas as contradições sobre as questões identitárias da terceira década do século 21?
Tem gente que é bem-informada. Jornalistas que cobrem os assuntos. Acadêmicos, especialistas que passam a vida estudando os temas da hora. Tem as vítimas, em escândalos de assédio, que devemos escutar com todo o cuidado. E os acusados a quem devemos a mesma escuta. Mas a geral não parece muito interessada em escutar.
A impressão que dá é que não importa mais a história: abre-se um leilão no mercado das opiniões. Quem tem a posição mais descolada? Mais "edgy"? Mais "cool"?. Cria-se uma Disneylândia, uma Las Vegas do comentário. Todo mundo querendo o melhor lugar na roda gigante, a melhor mão no pôquer. Querendo pegar o bonde andando e sentar na janelinha. Não se busca a justiça, mas likes, ao custo do sofrimento alheio.
A realidade é muito complexa. Às vezes o que parece o óbvio ululante se prova o contrário. Às vezes o que parece o óbvio ululante é só o óbvio ululante, mesmo. Às vezes é melhor ficar quieto e prestar atenção. Como se vê por essa crônica, eu não consegui.
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