Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

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Atila Iamarino
Descrição de chapéu Coronavírus

Mais um passaporte de imunidade

Proteção contra uma doença já foi explorada no passado para a volta ao trabalho

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Com a epidemia atropelando economia e vidas, especialmente em cortiços, a cidade do Rio de Janeiro teve de adotar quarentenas. Quem pôde fugiu de multidões em Petrópolis. Enquanto isso, o pronunciamento dos médicos dizia que cariocas tinham pouco a temer e que talvez fosse bom que adoecessem em grandes números, já que os negros e os “aclimatados” tinham uma infecção benigna. Era bom que desenvolvessem imunidade.

As sentenças estão no passado porque tratam dos vários surtos de febre amarela do século 19. Outra virose trazida por quem veio da Europa, seu vírus e os mosquitos que a transmitem vieram com os milhões de africanos escravizados. Cada navio negreiro tinha o potencial de semear um surto, como o de 1849-50, quando a epidemia matou 4.160 pessoas segundo os números oficiais —alguns apontavam para até 15 mil mortos.

Os curados não pegavam mais a doença, mas, com os imigrantes, os números de suscetíveis ficavam grandes o suficiente, e outro surto acontecia. Essa falta de um passaporte imune dos europeus, segundo historiadores como Sidney Chalhoub, acabou atrasando a transição da mão de obra escrava para a imigrante.

E esse pode nem ter sido o primeiro uso da imunidade brasileira para retomar a atividade numa pandemia. A malária é outra doença trazida nos navios negreiros, que no começo do século passado atacava metade dos brasileiros todos os anos. Só deixou de ser esse problema graças a pesquisadores como Adolfo Lutz e Oswaldo Cruz.

Até então, quem sofria menos com ela eram os africanos vindos de regiões afetadas pela doença há milhares de anos que também vieram com uma “cura”: a anemia falciforme. Uma condição genética que quando herdada de ambos os pais pode matar ainda na infância. E por que algo tão sério era prevalente assim? Porque portadores da anemia falciforme só por um dos pais têm mais resistência à malária. E, em tempos de lavoura e escravidão, podiam continuar trabalhando enquanto outros morriam de febre, um incentivo perverso de exploração desse passaporte imune.

Nos EUA, onde os registros foram preservados, escravos eram mais comuns em regiões onde a malária era mais comum e mais valiosos se viessem de populações mais resistentes. Tanto no sul dos EUA quanto na Bahia e no Rio de Janeiro, até hoje afrodescendentes sofrem mais de anemia falciforme, uma marca da seleção pela imunidade de seus ancestrais.

E conforme os esforços de contenção da Covid-19 dão resultado, a aparente calmaria dá voz ao movimento de reabertura. E uma das propostas é o “passaporte imune”, a ideia de aproveitar quem já se curou do Sars-CoV-2 para trabalhar porque estão protegidos.

O passaporte é uma ideia que pode ser bem intencionada, mas depende de como for usada se for a única opção para recolocação social dos mais vulneráveis. Uma obrigação que faz aqueles que têm mais pré-condições contarem com a sorte e com uma infraestrutura de saúde que pode ser precária. E um conceito que depende de uma hipótese sem tempo de ser testada: a de que quem se cura não pega mais o vírus.

Tudo indica que sim, mas essa proteção pode ser temporária, e os outros coronavírus que nos causam resfriados podem voltar a infectar alguém curado um ou dois anos depois.

E se esse for o caso com a Covid-19, os descendentes de explorados pela imunidade no passado serão os primeiros que precisarão trabalhar. E são os parentes e as comunidades que vivem na encarnação moderna dos cortiços cariocas que descobrirão se estão realmente imunes ou se não trazer o vírus para casa. Mais uma vez.

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