Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Becky S. Korich

Não acredito em santos

Quanto mais sujos os outros parecem, mais limpos eles se sentem

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Passada a Semana Santa, devo confessar: não acredito em santos. Me refiro a pessoas, aquelas certinhas, equilibradas, corretas, que nunca saem dos trilhos. Aquelas que não se permitem, não ousam, não relaxam da própria perfeição.

Tem sempre um certinho no nosso cenário que, nos acusando ou sem falar nada, tem a habilidade de escancarar o quanto somos tortos, maus e imprestáveis.

Me lembro bem, na escola, de um protótipo desta espécie. Era o primeiro a levantar a mão e o último a fechar o caderno. Vivia colado nos professores e se achava descolado por isso. Estava permanentemente limpo, não suava nos intervalos, não sacaneava os colegas. Saía da escola igual entrava: blusa para dentro da calça, cabelo arrumado, estojo organizado e tênis amarrados. Quando descobria que roubávamos provas ou simulávamos uma dor de barriga para matar aula na enfermaria, ele nos delatava impiedosamente.

Henrik Weis/Image Source

Nos vingávamos violando a sua lancheira. Tirávamos o queijo do sanduíche, mordíamos a maçã, tomávamos metade do seu Yakult. Mas ao mesmo tempo que sentíamos um alívio, nosso ato vândalo endossava o quanto éramos canalhas.

Ele, passivamente ardiloso, não contestava: era a sua contravingança. Deixava que isso se repetisse só pelo prazer de confirmar que sim, éramos sórdidos. Porque quanto mais sujos parecíamos, mais limpo ele se sentia. E nós caíamos na armadilha, pois éramos ingênuos demais para perceber que só existem anjos porque existem demônios.

E esses anjinhos se tornam adultos. Uns se livram da persona correta quando conseguem entender que se aprende mais na quadra do que na sala de aula. Outros, enjoados de si mesmos, viram corruptos e invertem o jogo. E sobram os resistentes, que continuam se escondendo por trás do bom garoto e se tornam adultos-modelos. Passam, assim, a fazer parte de uma espécie superior, uma estirpe salvadora em um mundo irremediável.

Haja santa paciência para esses santos. Só falam de coisas corretas, na hora correta, sem a alma da verdade. Estão sempre em forma, só se alimentam do estritamente saudável, sem a alma do prazer. São devotos de si mesmos, vassalos e senhores num só corpo, um corpo perfeito, que abriga uma alma sufocada.

São rebeldes por pura obediência ao que se deve ser. Levantam bandeiras das causas da moda, incapazes de criar novas modas. Trabalham muito (especialmente quando o chefe está por perto), são contra feriados (pra quê?) e condenam o ócio (pura vagabundagem).

Para eles a verdade é uma só. Consideram indignos de sua confiança aqueles que não pensam igual. Consideram fracos os que se permitem mudar de ideia. E como se levam a sério...

Homens provedores, fortes e destemidos. Seu único temor é ter que encarar suas próprias fraquezas. Mulheres frágeis e dedicadas, para quem o cansaço é uma virtude. Sua nobreza vem do sacrifício. Consideram egoístas as mulheres que têm vida própria e julgam indecentes as mulheres que sentem desejos.

Esses seres especiais vivem silenciando suas dúvidas, fazendo barulho com ideias alheias, roubando velas dos outros para se iluminar. Não se permitem exagerar, se esquecendo de que a vida, em si, é uma extravagância e que a imperfeição humana é a nossa maior virtude.

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