Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Becky S. Korich

Sorria, você está sendo fotografado

Em fotos coletivas, só sobrevive uma: a que você se saiu bem

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É uma proliferação que não termina. Foto do rosto, do filho, da lua, do livro, da bunda, do esmalte nas unhas, da medalha nos dentes. Foto de hoje para o #tbt do ano que vem, foto da foto de ontem, da criança que já foi um dia.

Fotos de gargalhadas com amigas (invejo: sou incapaz de dar risada quando é para ser fotografada). Com tantos registros, a vida passou a ser um documentário, com mais ficção do que realismo. O encontro com amigos não será encontro —e nem os amigos serão amigos— se não tiver o momento mágico da foto. A pessoa já se olha no espelho de casa pensando no registro fotográfico, ensaia o melhor ângulo e o resto que vier é lucro.

Abriu um vinho? Tem que ter foto da garrafa, que é mais inebriante do que o próprio vinho. Na academia, uma foto para cada série de quinze. A foto com o atual, mostra o quanto você é bem-amada; a foto com o ex e sua atual namorada, o quanto é bem resolvida. Na hora da fome— de comer ou de postar —um bolo resolve, pelo menos até a próxima compulsão. E fica o gosto doce e fermentado de cada like na foto gourmet do bolo que deu certo.

Mulher faz fotografia com celular na praça da República, no centro de São Paulo - Zanone Fraissat - 2.ago.19/Folhapress

Fotos funcionam como causa, como meta, como consolo. O foco perfeito para embaçar a realidade. O zoom para afastar o que não gostamos de ver em nós. A regra é fotografar muito, vale tudo, principalmente edições e filtros. Sim, porque todo mundo (inclusive você) precisa saber o quanto você é gostoso, divertido, culto, descolado, esportista, viajado e ainda tem tempo de estar sempre bem acompanhado ... até você ter inveja de você mesmo. Não basta ser, tem que mostrar que é, mesmo o que não é. Tem que ficar bem na foto: dentro e fora dela.

Apesar de não ter papel, as fotos de hoje assumem um outro papel, o das personagens que queremos interpretar. Não podemos tocá-las, ao mesmo tempo que elas não nos tocam mais, pois servem mais aos outros do que a nós. Elas não são mais reveladas, pelo contrário, mais escondem do que revelam. Se antes era um momento para cada foto, hoje são várias fotos para um momento só. Em vez de apertar uma vez, se clicam dez. Em fotos coletivas, só sobrevive uma: a que você se saiu bem, mesmo que todos os outros estejam com a boca torta ou com os olhos fechados.

Mas algumas pontas soltas sempre sobram nesse reality show, as fotos deixam escapar algumas penumbras, sobra uma ruga que escapa do filtro, um fio de cabelo fora do lugar, um sorriso desbotado de tanto se repetir. E fica faltando um pouco de vida nessa sobra de vida produzida.

Não sei o que é mais angustiante, a ânsia pelas fotos, ou a felicidade obrigatória aprisionada nas imagens. Só sei que, se eu fosse a "eu" de todas as minhas centenas de fotos a cada capítulo da minha novela, eu teria fugido por algum canto da moldura. Não suportaria tamanha felicidade enquadrada, presa na própria obrigação de sempre parecer feliz.

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