Becky S. Korich

Advogada, escritora e dramaturga, é autora de 'Caos e Amor'

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Osama bin Laden virou pop

Os pós-doutorados em TikTok e os militantes de teclado

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Com apenas 371 seguidores no TikTok, _monix2, uma usuária da plataforma causou nas redes. Ela teve a ideia genial de postar um vídeo em que lia partes da "Carta à América" escrita por Osama bin Laden e divulgada em 2002, um ano após os ataques terroristas orquestrados pelo Al-Qaeda. A infeliz não conhecia esse tal Osama e o elegeu como o novo ícone da luta pelos direitos dos oprimidos.

O vídeo foi visto mais de 2 milhões de vezes no TikTok –um número relativamente baixo para um aplicativo tão popular– e gerou dezenas de outros vídeos na plataforma. Mas o assunto só se popularizou quando o jornalista Yashar Ali teve a brilhante ideia de aprimorar a ideia genial da tiktoker e compartilhou uma compilação desses vídeos (suprimindo inocentemente as partes mais perturbadoras da carta) em uma postagem no X, ex-Twitter, que foi visualizada mais de 38 milhões de vezes. Resultado: em poucas horas Bin Laden virou uma "trending topic" nas redes. As postagens #lettertoamerica tiveram mais de 15 milhões de visualizações.

A propagação da carta recebeu uma enxurrada de comentários e despertou profundas reflexões de tiktokers, a maioria constituída de crianças e adolescentes que nem eram nascidos no 11 de setembro. "Se você leu, me avise se você também está passando uma crise existencial neste exato momento, porque nos últimos 20 minutos, todo o meu ponto de vista sobre toda a vida em que acreditei e vivi mudou", escreveu uma delas.

Logotipo da rede social TikTok - Dado Ruvic/Reuters

Outro pós-graduado e mestre em TikTok, reuniu algumas palavras da moda em uma só frase para conferir ares de intelectualidade ao seu comentário: "no colonialismo, qualquer tipo de resistência é classificado como terrorista, porque a única violência aceitável é a violência do ocupante".

Algumas pessoas viram a luz e encontraram a resposta para todos seus problemas existenciais: "Todos deveriam ler", "Essa carta é reveladora", "Explica muita coisa", "Ele estava certo", "TUDO faz sentido agora". Tiveram, ainda, os adeptos à teoria da conspiração que questionaram a veracidade do 11 de setembro, "foi tudo montagem", "uma farsa".

As alucinações de um oprimido terrorista, que, pobrezinho, foi obrigado a matar quase 3.000 pessoas como um ato de resistência, entusiasmaram a juventude, para quem o TikTok é –se não única– a maior fonte de informações e notícias. A Al-Qaeda e o grupo terrorista Estado Islâmico agradecem! Para muitos dos tiktokers, a carta de Bin Laden foi novidade e, destacada do contexto pela qual foi escrita, ficou fácil para eles glorificarem o seu autor e considerarem a carta uma fonte reveladora da grande verdade, ocultada esse tempo todo pelos cruéis colonialistas.

Para eles pouco importa que o que se tornou viral foi uma leitura seletiva de partes da carta. Os pontos omitidos no vídeo? Meros detalhes. A parte que se refere à imoralidade e devassidão ocidentais, como "atos de fornicação, homossexualidade, drogas, jogos de azar e comércio com juros", é realmente irrelevante. Bin Laden nunca escondeu suas ideias sobre a objetificação das mulheres, nem às suas próprias esposas que geraram seus mais de 20 filhos. São pormenores insignificantes diante da causa sustentada.

Os vídeos foram removidos –só depois de viralizar– por violação das diretrizes das comunidades das plataformas. O jornal The Guardian, que tinha publicado a carta do na íntegra em 2002, também decidiu tirá-la do ar, para evitar que fosse compartilhada nas redes sociais sem o contexto completo.

Mas os esforços para diminuir o impacto do assunto saíram pela culatra. A remoção deu importância à carta, projetando mais luz às ideias nefastas. Na tarde de quinta-feira (16), o link do documento removido estava listado como um dos mais vistos no site do The Guardian. É o fenômeno chamado "efeito Streisand", uma referência à cantora Barbra Streisand, que, ao processar por invasão de privacidade um fotógrafo que tirou fotos aéreas de sua casa, gerou mais curiosidade e ampliou a divulgação das fotos. Esse efeito se potencializa quando se trata de jovens, que têm as mais belas e imutáveis certezas ideológicas por trás de uma tela.

A NewsGuard, que monitoriza a desinformação online, está cansada de apontar falsas informações nos vídeos sugeridos automaticamente pelo TikTok: de 5 postagens, 1 é fake (pesquisa de 2022). A plataforma chinesa é acusada de agir intencionalmente, apesar de não ter nenhuma evidência nesse sentido. "Ou é incompetência ou é algo pior", disse Steven Brill, fundador da NewsGuard.

Existe saída? Não creio. A saída possível seria ampliar a visão estrita e manipulada que os jovens recebem das redes, porque o único remédio para desinformação, claro, é a informação. Dados, contextos, notícias, documentos, livros, jornais, nada disso interessa nem às redes, nem aos jovens. Acostumados a processar conhecimento com os olhos, sem precisar raciocinar, deixam que a inteligência social pense e decida por eles. Não sobra curiosidade para procurar novas fontes, para fazê-los ultrapassar os muros das redes e conhecer outras dancinhas. O remédio da informação é muito amargo, perto das doces e dopamínicas redes sociais. É concorrência desleal.

Máquinas de doutrinação transvestidas de entretenimento, as redes sociais produzem militantes de teclado que pouco entendem de questões geopolíticas e direitos humanos. Já se dizia que cultura é como geleia, quanto menos se tem mais se procura espalhar. Nada mais atual.

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