Depois de muito matutar, Imprestável tem uma ideia que ele próprio classifica de "brilhante" entre a profusão de esquemas, estratagemas e outras boçalidades que vem rabiscando em seu bloquinho de ideias: vai convocar uma cruzada contra os impostos.
Ninguém gosta de pagar imposto, assim como criança não gosta de tomar banho, Imprestável pensa, satisfeito com a lógica cristalina de seu pensamento baseado na própria experiência. A convocação está consagrada ao sucesso.
Muita gente aparece, é claro, e aos poucos mais e mais gente, de diferentes classes. Há quem, por ser muito rico, ache justo uma cobrança inversa à renda: quanto mais dinheiro, mais isenção; há quem ache injusto ter de pagar por escola e saúde de filho de empregada; e há quem, como Imprestável, ache que imposto só serve para sustentar imprestáveis como ele.
Deixar de pagar imposto não significa portanto deixar de viver de dinheiro público. A isso ele dá o nome de liberdade. A onda pega, e a cruzada inicia sua longa caminhada.
Conforme avançam e mais gente vai se juntando a eles, Imprestável intensifica seus chamados pela desregulação de tudo. A cruzada já não é só contra o imposto e o patrimônio público, mas contra a lei. Uma coisa depende da outra, claro.
A maior abrangência resulta numa enxurrada de neófitos. Gente de várias extrações e até da lei: juízes, procuradores, advogados e polícias, agora mancomunados na sua derrubada. Afinal, trabalhar dá trabalho. Um país sem lei vai facilitar demais a nossa vida, argumenta Imprestável, sob aplausos e vivas.
Como sem impostos as contas não fecham, Imprestável vê-se obrigado a diversificar também a sua lógica matemática: propõe compensar o fim dos impostos e da lei com valores religiosos e autodefesa. E aí se juntam à cruzada todos os que de alguma forma podem colaborar para o sucesso da incrível empreitada: instrutores de jiu-jítsu e de clubes de tiro, escuderias de segurança privada e associações de policiais aposentados, donos de igreja e fabricantes de pistolas etc. Sucesso total.
A cruzada exala o sentimento comum de quem só quer se dar bem, sem encheção de saco. E por isso, como não poderia deixar de ser, passam a chamar-se gente do bem. O mal ficando com quem enche o saco por não comungar da mesma cartilha e dos mesmos credos.
Imprestável aproveita o momento para eletrizar seus seguidores com ações contra essa gente que não se submete aos valores que eles, por arrotá-los, estão livres para descumprir. Não há por que se espantar se entre cruzados berrando contra os direitos das mulheres e o aborto legal haja pais e mães cujas filhas se beneficiam das melhores condições, das melhores clínicas e dos melhores médicos, como as mães antes delas, para se livrar de uma gravidez indesejada. Acontece.
O caldo da cruzada vai engrossando conforme as palavras do Imprestável ecoam a hipocrisia e a irresponsabilidade interessada de seus seguidores, sonegadores e outros adeptos da ilicitude na cidade, no campo e na floresta, que se sentem representados.
Para defender-se de quem não os segue, Imprestável os exorta a se armar. É mais um sucesso para a economia da cruzada, com transações de todos os gêneros e modalidades, que entretanto permitem a alguns dar-se conta de repente de que estão cercados de bandidos de todos os gêneros e modalidades, por todos os lados. Uma procissão de pulhas, manipuladores, embusteiros, estelionatários, fariseus, milicianos, matadores de aluguel, todos juntos comungando dos mesmos objetivos e valores do bem.
Como também estão todos armados, não há como se abster da autodefesa. E é o que basta para começarem a se matar. Um massacre. Afinal gozam da liberdade de escorregar e cair no próprio sangue.
No auge da excitação, quando vai derrubar o pouco que restou em pé, Imprestável acorda para a triste realidade. Aquela miséria toda ao redor, fome, desamparo, analfabetismo. Está de volta ao mundo de sua mediocridade e de sua mesquinharia, de onde nunca saiu. Esteve sonhando em cima do bloquinho de ideias boçais.
Agora estão batendo à porta. Ué? Ainda tem lei? A polícia recebeu uma denúncia e quer saber sobre mais uma de suas trapaças. Imprestável andou roubando cestas básicas doadas à igreja do bairro, para vendê-las com ágio. Acuado, diz que são mentiras, mentiras e mais mentiras. Como sempre. Nunca assume responsabilidade de nada. Nunca tem culpa de nada. Por que deveria ter? Seu sonho é o pesadelo dos outros. Temendo a cadeia, ele pergunta: E desde quando sonhar é crime?
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