Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bernardo Carvalho

Continuamos brincando de democracia enquanto Bolsonaro a desmancha

Como em romance de Dostoiévski, quem diz que as instituições estão funcionando se recusa a entender o fedor do cadáver

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não é a primeira vez que menciono neste espaço a observação de Brecht sobre Kafka e Dostoiévski, citada por Ricardo Piglia no segundo volume dos seus “Diários de Emilio Renzi” (o terceiro e último acaba de sair pela Todavia). Não é a primeira e provavelmente não será a última, mas desta vez a repetição é o próprio argumento do texto.

Brecht defende que Kafka não teria encontrado sua forma literária sem antes ler a passagem que narra o velório do monge Zossima, em “Os Irmãos Karamázov”.

Multidões convergem para o mosteiro para velar o corpo do santo. Esperam um milagre. O corpo dos santos em princípio não se corrompe. E de repente um monge abre uma janela do recinto. Brecht atribui à banalidade desse ato o fundamento do absurdo kafkiano.

Ninguém entende nada, porque ninguém está preparado para entender. O cadáver de Zossima começa a empestear o ambiente, mas não faz sentido abrir a janela, porque o corpo dos santos não se corrompe. O que se espera ali é o milagre, a transcendência, e a espera do milagre impede que se veja o óbvio e que se estabeleça um nexo entre o cadáver e o fedor. O gesto do monge abrindo a janela é precisamente a marca do absurdo kafkiano, segundo Brecht, o que não se compreende na sua mais obtusa e perturbadora evidência.

Também esperamos no Brasil.

Esperamos quando o céu de São Paulo é tomado pela nuvem negra das queimadas na Amazônia.

Esperamos quando são presos os executores (mas não os mandantes do assassinato) de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Esperamos quando é preso o amigo íntimo que atuava como o elo perdido entre a família do presidente e assassinos de aluguel, além de ser articulador de um esquema notório de desvio de verbas públicas.

Esperamos quando centenas de milhares de cidadãos morrem em decorrência da aposta assassina do presidente (e de seu governo cúmplice) que, numa tática criminosa de sobrevivência política, insiste em debochar da ciência, da razão e da única solução disponível para impedir o avanço da morte.

Esperamos quando um general da ativa, instrumento irresponsável da estratégia negacionista do governo (equivocada até no seu canhestro cálculo econômico), comparece a um ato político ao lado do presidente, o que é vedado por lei e pelo regimento interno das Forças Armadas.

Mas o que se espera nunca chega, como o milagre para os crentes ao redor do corpo putrefato do monge Zossima. A única diferença é que aqui os termos estão invertidos.

O governo não cai nem se responsabiliza por nada, nunca, reiteradamente, como se não houvesse por que se responsabilizar. Quando a justiça parece enfim acercar-se, uma nova surpresa nos leva, repetidamente, a descartar as consequências lógicas da justiça, de volta ao lugar de onde nunca saímos, como se nada tivesse acontecido.

O general, envolvido na morte de milhares de brasileiros, recebe licença para mentir e não só não é punido (como exigem as normas internas do Exército) como é galardoado pelo chefe com o cargo de conselheiro presidencial para assuntos estratégicos. O Exército, suposto defensor da nação, lacra sob sigilo, por cem anos, os documentos relacionados ao caso.

O elo perdido entre a família do presidente e assassinos de aluguel volta para casa sob alegações humanitárias e se perde de vez.

A responsabilidade (e, na falta dela, a responsabilização) das autoridades é condição para o funcionamento das democracias. Entretanto, apesar das repetidas afrontas, continuamos esperando. Continuamos brincando de democracia funcional, enquanto os que ocupam o poder implementam incólumes o plano que traçaram para desmanchá-la.

Qual o nexo entre defender uma sociedade supostamente livre e servir-se arbitrária e impropriamente do poder do Estado e de penduricalhos da ditadura militar para perseguir quem denuncia seus crimes?

Qual o nexo entre repetir que as instituições democráticas estão funcionando e não ser submetido às consequências da lei?

Qual o nexo entre o fedor e o cadáver?

Segundo Brecht, o kafkiano é resultado da incompreensão de uma evidência incontornável diante da transcendência que falta. Aqui, ao contrário, no lugar do milagre, o que falta é o desdobramento lógico, o que pode, como diz a canção de Caetano Veloso, “ter sempre estado oculto, quando terá sido o óbvio”.

Suspeito que os que agora dizem que as instituições estão funcionando sejam os mesmos que diziam que Bolsonaro jamais seria eleito. O cadáver está fedendo, mas o incompreensível, o kafkiano, é que ninguém abra as janelas.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.