"Que foi?"
"Não consigo dormir."
"Vira pro outro lado."
"Já virei."
"Quer um ansiolítico?"
"É a primeira vez..."
"O quê?"
"Não sei. Uma dor aqui."
"Tá com medo?"
"Por quê?"
"Sei lá. Impressão."
"Não paro de pensar no que a gente fez."
"O quê?"
"Tudo."
"Tudo o quê?"
"A manipulação dos idiotas. A instrumentalização, o aparelhamento e a corrupção das instituições. As mentiras, a má-fé, o oportunismo. Todas as mortes. E agora posar de vítima..."
"Já, já ninguém mais lembra. Você tá se sentindo traído, abandonado. É normal. Ficou impressionado com os acontecimentos das últimas semanas. Vai passar. A gente não tá sozinho. Vira pro outro lado e dorme."
"Nós, vítimas?! Dá pra acreditar?"
"Que é que tá acontecendo com você? É depressão?"
"Não sei, é um peso aqui. Não consigo respirar."
"Você tá com culpa?"
"Preciso respirar!"
"Respirar todo mundo respira. Agora é hora de reagir e salvar o que é nosso. Não é hora de fraquejar! Que novidade é essa? Culpa é doença."
"Não é você que fica aí repetindo essa ladainha de Jesus pra lá, Jesus pra cá?"
"Jesus é corpo fechado, blindagem completa."
"A Bíblia manda confessar, assumir os pecados."
"Tiro no pé, não!"
"Você não sente culpa?"
"Culpa não paga conta. A gente passou a vida no esgoto, fazendo um negocinho aqui outro ali, uma boquinha aqui, outra ali. Driblando a lei. Lembra de onde você veio?"
"E você, sua ingrata?"
"Então, nós dois. A gente ralou pra chegar até aqui, e agora, depois de estar por cima da carne-seca, vai se arrepender? Assumir os pecados? Perdeu o juízo? E seus advogados? E todo mundo que te apoiou? E a grana nisso tudo? Vai jogar fora teu capital político? Tanta gente contando com você."
"Você não tem vergonha?"
"Do quê?"
"De tudo. E ainda por cima falando em nome de Deus?"
"A gente combinou, tá lembrado? A santinha sou eu, não você."
"Jesus tá te ouvindo."
"Quem fala em Jesus aqui sou eu, tá legal? Fica na sua e faz o que tem que fazer."
"Não dá mais."
"O quê?"
"Não dá pra continuar com as provocações, o cinismo, a hipocrisia."
"Tá de sacanagem? Só falta dizer que a verdade salva!"
"Não é o que a gente sempre disse? Vou contar tudo."
"Contar o quê?"
"Vou confirmar o que todo mundo já sabe. Quem a gente é."
"Você não vai é sair dessa casa!"
"A gente é muito cara de pau."
"Como é que é?"
"Não aguento mais trambiqueiro, trombadinha, amigo miliciano."
"Que foi que deu em você?! Tá louco? Até ontem tava dizendo que era a gente ou ninguém. É nós! Sua família, nosso mundo! Lembra? Construção de uma vida inteira! Falta só mais um tiquinho. Vai arregar agora?! Um monte de gente envolvida. Toda a bandalha do nosso lado. E não só! Não só!"
"Eu sei. Têm os fodidos também. E os tontos. Ai!"
"Que foi?"
"A gente é um câncer."
"Jesus amado, quem é esse estranho na minha cama? É pesadelo? AVC? Traz meu marido psicopata de volta!"
"Exu."
"O quê?"
"É Exu que está do seu lado."
"Que merda é essa agora?"
"Uai, não é você que acredita em demônio?"
'Que história é essa?"
"O demônio somos nós, santinha."
"Vou chamar o Waldecyr. Você tá entendendo? Vou chamar o segurança. Vou dizer que tem um estranho dentro de casa. Um bandido."
"Chama o exorcista, linda."
"Você ainda não entendeu que o capitalismo está chegando ao fim e que você era só um instrumento na aliança entre as elites econômicas e o populismo?"
"Como é que é?"
"Tua culpa, a essa altura do campeonato, amor, é anacronismo. E arrogância."
"Que porra você tá falando?"
"A língua do Espírito Santo."
"Caralho. Vamos acabar com esse circo."
"Sim. O modelo da democracia ocidental acabou."
"Como é?"
"O Estado-nação é uma quimera do passado."
"Em que igreja você ouviu essas merdas?"
"É o Apocalipse. Somos joguetes da história na passagem para um mundo que ainda não conhecemos."
"Pombagira comunista!"
"A gente é bandido, sim, amor, porque o crime é o agente social da mudança. Não precisa ter culpa. Você é parte da história."
"Não vai ter mundo novo nenhum. A gente vai destruir tudo antes."
"É essa a ideia."
"Ai! Puta dor do caralho!"
"Anunciar que é culpado de tudo pra quê? Acha que vai pro Céu a essa altura?"
"Tô sufocando. É Deus se vingando, em nome dos mortos!"
"O Céu não existe, amor. E eu sei do que estou falando."
"Não consigo respirar."
"Somos cavaleiros de Jesus, anunciando os estertores da democracia ocidental."
"Cala a boca! Tô morrendo, chama alguém!"
"Com o fim do Estado-nação, aos miseráveis só restará o império de Cristo. Sou sua bala de prata."
"Urgh... Hhhrrugh..."
"Chega de imitar os mortos! Coisa mais sem graça! Tudo tem seu tempo. Você não é mais criança!"
"Urghhrrrrrr…"
"Alô? Waldecyr, pode chamar os meninos, por favor? Não, não precisa. Foi um santo, um herói. A essa hora já está no Céu, trocando uma ideia com Deus."
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