Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Bernardo Carvalho

Lady Macbeth da pós-verdade

Um diálogo inspirado na obra de Shakespeare

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"Que foi?"

"Não consigo dormir."

"Vira pro outro lado."

"Já virei."

"Quer um ansiolítico?"

"É a primeira vez..."

"O quê?"

"Não sei. Uma dor aqui."

"Tá com medo?"

"Por quê?"

"Sei lá. Impressão."

"Não paro de pensar no que a gente fez."

"O quê?"

"Tudo."

"Tudo o quê?"

"A manipulação dos idiotas. A instrumentalização, o aparelhamento e a corrupção das instituições. As mentiras, a má-fé, o oportunismo. Todas as mortes. E agora posar de vítima..."

"Já, já ninguém mais lembra. Você tá se sentindo traído, abandonado. É normal. Ficou impressionado com os acontecimentos das últimas semanas. Vai passar. A gente não tá sozinho. Vira pro outro lado e dorme."

"Nós, vítimas?! Dá pra acreditar?"

"Que é que tá acontecendo com você? É depressão?"

"Não sei, é um peso aqui. Não consigo respirar."

"Você tá com culpa?"

"Preciso respirar!"

"Respirar todo mundo respira. Agora é hora de reagir e salvar o que é nosso. Não é hora de fraquejar! Que novidade é essa? Culpa é doença."

"Não é você que fica aí repetindo essa ladainha de Jesus pra lá, Jesus pra cá?"

"Jesus é corpo fechado, blindagem completa."

"A Bíblia manda confessar, assumir os pecados."

"Tiro no pé, não!"

"Você não sente culpa?"

"Culpa não paga conta. A gente passou a vida no esgoto, fazendo um negocinho aqui outro ali, uma boquinha aqui, outra ali. Driblando a lei. Lembra de onde você veio?"

"E você, sua ingrata?"

"Então, nós dois. A gente ralou pra chegar até aqui, e agora, depois de estar por cima da carne-seca, vai se arrepender? Assumir os pecados? Perdeu o juízo? E seus advogados? E todo mundo que te apoiou? E a grana nisso tudo? Vai jogar fora teu capital político? Tanta gente contando com você."

"Você não tem vergonha?"

"Do quê?"

"De tudo. E ainda por cima falando em nome de Deus?"

"A gente combinou, tá lembrado? A santinha sou eu, não você."

"Jesus tá te ouvindo."

"Quem fala em Jesus aqui sou eu, tá legal? Fica na sua e faz o que tem que fazer."

"Não dá mais."

"O quê?"

"Não dá pra continuar com as provocações, o cinismo, a hipocrisia."

"Tá de sacanagem? Só falta dizer que a verdade salva!"

"Não é o que a gente sempre disse? Vou contar tudo."

"Contar o quê?"

"Vou confirmar o que todo mundo já sabe. Quem a gente é."

"Você não vai é sair dessa casa!"

"A gente é muito cara de pau."

"Como é que é?"

"Não aguento mais trambiqueiro, trombadinha, amigo miliciano."

"Que foi que deu em você?! Tá louco? Até ontem tava dizendo que era a gente ou ninguém. É nós! Sua família, nosso mundo! Lembra? Construção de uma vida inteira! Falta só mais um tiquinho. Vai arregar agora?! Um monte de gente envolvida. Toda a bandalha do nosso lado. E não só! Não só!"

"Eu sei. Têm os fodidos também. E os tontos. Ai!"

"Que foi?"

"A gente é um câncer."

"Jesus amado, quem é esse estranho na minha cama? É pesadelo? AVC? Traz meu marido psicopata de volta!"

"Exu."

"O quê?"

"É Exu que está do seu lado."

"Que merda é essa agora?"

"Uai, não é você que acredita em demônio?"

'Que história é essa?"

"O demônio somos nós, santinha."

"Vou chamar o Waldecyr. Você tá entendendo? Vou chamar o segurança. Vou dizer que tem um estranho dentro de casa. Um bandido."

"Chama o exorcista, linda."

"Você ainda não entendeu que o capitalismo está chegando ao fim e que você era só um instrumento na aliança entre as elites econômicas e o populismo?"

"Como é que é?"

"Tua culpa, a essa altura do campeonato, amor, é anacronismo. E arrogância."

"Que porra você tá falando?"

"A língua do Espírito Santo."

"Caralho. Vamos acabar com esse circo."

"Sim. O modelo da democracia ocidental acabou."


"Como é?"

"O Estado-nação é uma quimera do passado."

"Em que igreja você ouviu essas merdas?"

"É o Apocalipse. Somos joguetes da história na passagem para um mundo que ainda não conhecemos."

"Pombagira comunista!"

"A gente é bandido, sim, amor, porque o crime é o agente social da mudança. Não precisa ter culpa. Você é parte da história."

"Não vai ter mundo novo nenhum. A gente vai destruir tudo antes."

"É essa a ideia."

"Ai! Puta dor do caralho!"

"Anunciar que é culpado de tudo pra quê? Acha que vai pro Céu a essa altura?"

"Tô sufocando. É Deus se vingando, em nome dos mortos!"

"O Céu não existe, amor. E eu sei do que estou falando."

"Não consigo respirar."

"Somos cavaleiros de Jesus, anunciando os estertores da democracia ocidental."

"Cala a boca! Tô morrendo, chama alguém!"

"Com o fim do Estado-nação, aos miseráveis só restará o império de Cristo. Sou sua bala de prata."

"Urgh... Hhhrrugh..."

"Chega de imitar os mortos! Coisa mais sem graça! Tudo tem seu tempo. Você não é mais criança!"

"Urghhrrrrrr…"

"Alô? Waldecyr, pode chamar os meninos, por favor? Não, não precisa. Foi um santo, um herói. A essa hora já está no Céu, trocando uma ideia com Deus."

Erramos: o texto foi alterado

Por erro de edição, a coluna foi publicada sem alguns trechos do diálogo. O texto foi corrigido.

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