Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu forças armadas

Bolsonaro, antes de psicopata, é encenador de alucinação coletiva

A desrazão, fruto da estratégia do presidente de nos enlouquecer e nos imobilizar, catalisa a paralisia nacional

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Recebi outro dia um vídeo em que a primeira-dama cai de joelhos no chão atrás de uma mesa numa sala da Câmara e, supostamente chorando, pede a Jesus que abençoe com seu sangue o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. São suas palavras.

Enquanto ela clama pelo avivamento divino, furtando-se ao olhar do público, no chão atrás da mesa, quem grava tudo no celular repete: "Emocionante!", entre aleluias e glórias a Deus.

De longe o efeito fica ainda mais impressionante. Não é de hoje que o país se tornou um circo de horrores, mas é como se já não houvesse antídoto possível dentro do Brasil. O que está em questão não é o respeito à liberdade de crença, mas o óbvio desrespeito aos princípios fundamentais da República. Basta dar um passo atrás para ver.

É fácil associar o que estamos vivendo a um hospício, com a desvantagem para nós de que nos hospícios há pelo menos a dignidade dos internos e sua dor. No Brasil tudo é indigno. A dor foi instrumentalizada pelo Estado contra a nação.

É da dignidade dos loucos que trata "Kliniken" (1993), do sueco Lars Norén (1944-2021), em cartaz no teatro do Odéon, em Paris, numa encenação de Julie Duclos. A peça coral reúne uma dúzia de personagens na sala de convivência de uma clínica psiquiátrica.

"Você está louca?", uma paciente pergunta a uma outra, que responde, numa das passagens mais espirituosas da peça: "Isso não é pergunta que se faça a quem está num hospital psiquiátrico".

"Kliniken" faz parte do que se convencionou chamar "teatro documentário", em que os personagens representam tipos e situações reais testemunhadas ou vividas pelo autor. Norén, que morreu no ano passado, vítima da Covid, foi diagnosticado como esquizofrênico na juventude e passou uma temporada numa clínica psiquiátrica quando tinha 20 anos.

No prefácio à nova edição da peça em francês, a atriz Judith Henry, que participou de uma montagem anterior, reflete sobre como representar a loucura: "Evitando representá-la". Claro. É o que garante a verdade e a complexidade dos personagens e o reconhecimento da dor, ao contrário da apropriação cínica, caricata e oportunista da loucura pelo poder.

O que creditamos à loucura hoje no Brasil é simples cortina de fumaça, impostura e provocação, encobrindo a má-fé, a violência, a mentira, a incompetência, o banditismo e a desonestidade. A loucura convertida de expressão da vítima em instrumento de engano e opressão.

Numa das primeiras cenas da peça, um dos internos conversa com um recém-chegado sobre um jovem esquizofrênico: "Ele acredita que está fazendo o serviço militar aqui". Pensei nos militares brasileiros que se servem, inversamente, da desrazão ambiente, contra os interesses da população e da nação, para garantir seus interesses pessoais, em vez de se resignar ao serviço para o qual são pagos por essa mesma população.

A dignidade está ligada à experiência da dor. É no que insiste o teatro documentário de Lars Norén ao dar a palavra aos que estão à margem. E é o que o populismo bolsonarista, religioso e militarista inverte deliberadamente em sua representação cabotina da margem, fazendo o elogio da escória.

Para o demagogo, a dor dos outros é só uma caricatura e uma oportunidade. Os internos da peça de Norén, ao contrário, são pára-raios do mundo exterior. Seu sofrimento é a expressão de uma sensibilidade radical e irrepresentável, que os destrói. Não formam um microcosmo da sociedade, uma alegoria na qual nós, do lado de fora, nos reconhecemos confortavelmente; são antes aqueles cuja hipersensibilidade expõe, no retiro da clínica psiquiátrica, o tamanho da doença que nos recusamos a ver.

Falando de suas visitas à família, uma das internas discorre sobre o tempo: "Quando chego lá, é como se o tempo tivesse parado, não posso me mexer, é o inferno...". Todos fazem as mesmas coisas, como se nada tivesse mudado.

No cinismo de suas bazófias e provocações, na estratégia de suas idas e vindas, ataques repetidos e aparentes batidas em retirada, o presidente encena a loucura para nos enlouquecer e a repetição para nos imobilizar. Onde não há razão nem tempo, é impossível argumentar ou se mexer. A desrazão passa a ser o elemento catalisador da paralisia nacional.

Antes de psicopata, Bolsonaro é o encenador calculista de uma alucinação coletiva à qual aderiram uns e outros, bandidos mais ou menos profissionais, espertos de plantão, não porque estivessem loucos, mas simplesmente porque acreditaram reconhecer afinal a grande chance de suas vidas.

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