Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Uma mulher pode descobrir a liberdade dirigindo um carro popular até demais

Destemida e completamente tunada, minha mãe se lançava às últimas fronteiras automobilísticas

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Quando Zildinha chegou, já parando o trânsito, enrolada num laço de fita gigante, minha mãe quase teve um treco. Primeiro, porque Zildinha em tese não era gente, mas um Fiat Prêmio 1988. Segundo, porque carros a apavoravam.

Minha família sempre possuiu o hábito, talvez estranho para alguns, de batizar coisas com nome de pessoas. E é claro que Zildinha não escapou dessa sina, posto que sua placa —ainda do tempo das duas letras e quatro dígitos— começava com “ZD”.

Releitura da obra 'We Can Do It' de J. Howard Miller. Nessa versão, a mulher está segurando uma chave de carro com um chaveiro de cubo mágico. Ela está com a roupa azul e um lenço vermelho na cabeça.
Marcelo Martinez/Folhapress

Papai a comprou numa promoção relâmpago. Modelo simples, branco, tinha nem vidro elétrico. Injeção eletrônica, ali, só se fosse de coragem, pois o objetivo era que minha mãe, já passada dos 40, se livrasse de traumas do passado. Ou você acha que davam moleza em 1958? Mulher ao volante, assédio constante.

“Cortavam a gente. Gritavam gracinhas. Um dia, um brucutu num Bel Air foi tão estúpido que parei no acostamento pra nunca mais”. Trinta anos depois, quem diria, aquele singelo automóvel a fez mudar de ideia.

A bordo de Zildinha, mamãe se soltou na pista, fazendo balizas que desafiavam as leis da física e subindo a serra em dias de chuva. Destemida e completamente tunada, ela se lançava até a última fronteira automobilística: parar em ladeira sem puxar freio de mão. Enquanto copilota mirim, participei orgulhosa dessa nova vida de aventuras, com cabelos ao vento e muita adrenalina, raramente ultrapassando 60 km/h.

Zildinha exagerava no álcool, é verdade. Também morria, de leve. Nada que comprometesse sua performance e fama de vida louca. “Como é que vai essa moça? Posso encher?”, zoava o frentista amigo. “Zildinha tá saidinha, hein? Hoje dormiu na rua”, acenava a vizinha da frente. Era a expressão “carro popular” ganhando novo significado.

Na saída da escola, quando a viam dobrando a esquina, até meus amigos gritavam em uníssono: “Zildinha chegou!”. Eu já no pré-vestibular e a turma aproveitando o intervalo para se aboletar dentro dela. Como cabia gente. Zildinha tinha o espaço interno de um coração de mãe.

Na hora da despedida, após tantos anos de estrada, toda a família sofreu. Anunciada nos classificados, Zildinha foi embora rápido, sem laço e sem festa —apenas alguns pontos de ferrugem. A sensação era a de perder uma parenta. Nunca mais apelidamos carro algum, pois seria desfeita. Nenhuma outra fulana ocuparia a gloriosa vaga de Zildinha em nossa memória. Nem mesmo uma Mercedes.

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