Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune

Garrafa de presente virou símbolo da fragilidade dos objetos, não das relações

Quando eu fechar meus olhos, vou me lembrar do gesto de Delma, que me presenteou com item da minha infância

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Era uma garrafa antiga, vermelha, de pescoço comprido e tampa em formato de bola. Dessas que foram moda, mas que agora são cada vez mais raras de se encontrar, pois quebram à toa. Passou toda a minha infância em cima da pia do banheiro —até que se perdeu durante uma mudança.

Consegui reencontrá-la quase três décadas depois, no fundo de uma foto postada no Facebook. Ao lado de uma bandeja de cajuzinhos, na festa de aniversário de 96 anos de dona Izabel, mãe de Delma. Não se tratava da mesma garrafa. A nostalgia provocada por ela é que me deu essa noção emotiva de continuidade.

"Ah, você adora essas coisas. Um dia eu falo com mamãe. Quem sabe?"

Na ilustração de Marcelo Martinez: o ícone de um olho fechado com uma garrafa comprida logo abaixo, como se fosse uma lágrima.
Ilustração publicada na coluna de 4 de setembro de 2022 - Marcelo Martinez

Delma me conhece bem. Desde o primeiro lar da minha vida adulta, sempre a tive por perto. Uma vez por semana. A semana inteira. Eu sem filho. Eu com filho. Atravessando meus diferentes estados civis. E com uma flanela na mão, sendo testemunha de todos os badulaques que já garimpei, troquei e dos quais me desfiz. Repetindo seu mantra: "Ah, você adora essas coisas".

Até que realmente falou sobre a garrafa com dona Izabel —que não só mandou recado, como me pôs em seu testamento. "Quando eu fechar meus olhos, pode contar. É tua! Na idade em que eu estou? Não vai tardar..."

Aí é que está. Torci muito para tardar, dona Izabel. Perspectivas de fim eram justamente o que me atormentavam àquela época. Internada havia meses, minha própria mãe não dava sinais de melhora. E o vaivém constante do hospital fazia com que eu mal encontrasse Delma em casa.

Um dia, de surpresa, ela me apareceu trazendo algo enrolado num pano de prato. Havia encarado uma van, um ônibus e o metrô com aquele volume, se escorando com toda a delicadeza. "Minha mãe te mandou esse presente adiantado, desejando melhoras para a tua". Era a garrafa, igualzinha à da minha infância.
Conforme eu me lembrava, em cada detalhe. Tão frágil quanto eu, naquele momento.

Mamãe morreu logo depois. Já dona Izabel teve outras festinhas, com mais cajuzinhos e celebrações digitais. Hoje pela manhã, tive a notícia de que se despediu do mundo aos 101 anos. Cercada pela família, mas sobretudo por Delma. Como era de se esperar.

Quando eu também fechar meus olhos, seguirei revendo aquele gesto no tal filmezinho da vida. A garrafa passará adiante. Enquanto isso, obrigada, Delma. Por tudo. Frágeis são os objetos, não certas relações. E como eu adoro essas coisas.

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