Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu

'Santa Evita' faz pensar se não nos devemos uma múmia de Dercy Gonçalves

Série argentina se baseia em fatos dignos do realismo fantástico para explicar o que aconteceu com o cadáver de Eva Perón

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Deitada eternamente em ataúde esplêndido, uma múmia tem ocupado meus dias. Algo que ninguém estranharia, dado o meu fascínio por mortos mantidos em sua glória. A questão, agora, jaz na obsessão que eu e muitos amigos estamos cultivando por uma múmia específica: a protagonista de "Santa Evita".

Dirigida pelo filho do escritor colombiano Gabriel García Márquez e estrelada por uma atriz uruguaia que foi paquita da Xuxa na Argentina, a série se baseia em fatos dignos do realismo fantástico de Borges e Cortázar. Um sangue novo que corre pelas veias abertas do streaming da América Latina, apenas misturado a uma substância que, logo nas primeiras cenas, embalsama a mítica primeira-dama Eva Perón.

No cartum de Marcelo Martinez: sob a luz de uma tocha, um explorador observa, com sua lupa, as inscrições do sarcófago dentro de uma tumba. Ao invés de hieróglifos, as inscrições são símbolos de palavrões de histórias em quadrinhos. Ele conclui: "Não resta dúvida: é a Dercy"
Ilustração de Marcelo Martinez para coluna de Bia Braune de 8.ago.2022 - Marcelo Martinez

Ao longo de sete episódios e mais de 20 anos de peripécias, seu cadáver dá origem a uma saga macabra e irresistível. O que faz de Evita um vulto histórico ainda mais extraordinário depois de sua morte —e olha que sua reputação sobreviveu ao filme com a Madonna.

Do lado de cá do Mercosul, me questiono quem impactaria assim nossa crônica política, pop e mortuária. Se você nasceu no século passado, foi assombrado pelo Mumm-Rá dos Thundercats e pela maldição de Tutancamôn nas matérias do Fantástico. Viu o meme das criancinhas fatiando um bolo em forma de múmia do Lênin ou descobriu, como eu, que exumaram o pintor Salvador Dalí com seus surrealistas bigodes na posição exata, às 10h10 do seu rosto.

No entanto, a odisseia do corpo de Evita sugere que talvez nos falte uma múmia 100% brasileira (político do PL não conta). Da coleção de dom Pedro 2º, havia três legitimamente mineiras, mas que sucumbiram ao incêndio do Museu Nacional, junto a suas companheiras egípcias.

A própria madrasta imperial, dona Amélia, mostrou-se parcialmente íntegra quando da abertura de sua cripta, mas era estrangeira de nascimento. E quanto às freiras incorruptíveis do mosteiro da Luz, em São Paulo, seus mistérios seguem tímidos e resguardados.

É por isso que, em face da tradição milenar de preservar notáveis em monumentos grandiosos, penso que perdemos a chance de eternizar a comediante Dercy Gonçalves. Artista corajosa, mulher à frente do seu tempo, repousa hoje numa pirâmide de vidro construída por ela mesma em vida —e uma vida de 101 anos.

Nem todo mundo alcançaria sua irreverência sincera e desbocada, cantando do alto de um balcão "Não chores por mim, p****!" e outros impropérios. Mas que seria maravilhoso e a nossa cara, ah, seria.

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