Deitada eternamente em ataúde esplêndido, uma múmia tem ocupado meus dias. Algo que ninguém estranharia, dado o meu fascínio por mortos mantidos em sua glória. A questão, agora, jaz na obsessão que eu e muitos amigos estamos cultivando por uma múmia específica: a protagonista de "Santa Evita".
Dirigida pelo filho do escritor colombiano Gabriel García Márquez e estrelada por uma atriz uruguaia que foi paquita da Xuxa na Argentina, a série se baseia em fatos dignos do realismo fantástico de Borges e Cortázar. Um sangue novo que corre pelas veias abertas do streaming da América Latina, apenas misturado a uma substância que, logo nas primeiras cenas, embalsama a mítica primeira-dama Eva Perón.
Ao longo de sete episódios e mais de 20 anos de peripécias, seu cadáver dá origem a uma saga macabra e irresistível. O que faz de Evita um vulto histórico ainda mais extraordinário depois de sua morte —e olha que sua reputação sobreviveu ao filme com a Madonna.
Do lado de cá do Mercosul, me questiono quem impactaria assim nossa crônica política, pop e mortuária. Se você nasceu no século passado, foi assombrado pelo Mumm-Rá dos Thundercats e pela maldição de Tutancamôn nas matérias do Fantástico. Viu o meme das criancinhas fatiando um bolo em forma de múmia do Lênin ou descobriu, como eu, que exumaram o pintor Salvador Dalí com seus surrealistas bigodes na posição exata, às 10h10 do seu rosto.
No entanto, a odisseia do corpo de Evita sugere que talvez nos falte uma múmia 100% brasileira (político do PL não conta). Da coleção de dom Pedro 2º, havia três legitimamente mineiras, mas que sucumbiram ao incêndio do Museu Nacional, junto a suas companheiras egípcias.
A própria madrasta imperial, dona Amélia, mostrou-se parcialmente íntegra quando da abertura de sua cripta, mas era estrangeira de nascimento. E quanto às freiras incorruptíveis do mosteiro da Luz, em São Paulo, seus mistérios seguem tímidos e resguardados.
É por isso que, em face da tradição milenar de preservar notáveis em monumentos grandiosos, penso que perdemos a chance de eternizar a comediante Dercy Gonçalves. Artista corajosa, mulher à frente do seu tempo, repousa hoje numa pirâmide de vidro construída por ela mesma em vida —e uma vida de 101 anos.
Nem todo mundo alcançaria sua irreverência sincera e desbocada, cantando do alto de um balcão "Não chores por mim, p****!" e outros impropérios. Mas que seria maravilhoso e a nossa cara, ah, seria.
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