Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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A urna eletrônica e o voto dos mais pobres

Preencher cédula de papel parece trivial, mas reduz participação daqueles que não sabem ler

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Esta coluna foi escrita em conjunto com Thomas Fujiwara, professor da Universidade de Princeton e responsável pelo estudo sobre os efeitos da introdução da urna eletrônica no Brasil.

O texto contribui para a campanha #ciêncianaseleições, e traz reflexões sobre como a ciência deve participar no debate de propostas em prol do Brasil.

Há pouco menos de 80 anos não era incomum a visão de que expurgar do eleitorado votos de analfabetos seria não apenas necessário como também salutar para a moralização das eleições no país. Nas palavras de Tenório Cavalcanti, deputado federal da UDN pelo Rio de Janeiro: "Se passarmos essa lei, iremos ao menos melhorar a qualidade do eleitorado brasileiro".

Tenório fala sobre a introdução das cédulas de papel nas eleições de 1956. O deputado era por certo um homem de estilo político agressivo e peculiar, cuja vida rendeu o clássico filme "O homem da capa preta".

TSE apresenta as novas urnas eletrônicas, que devem ser usadas a partir das eleições de 2022 - Abdias Pinheiro/SECOM/TSE/Divulgação

Mas a visão de Tenório era também compartilhada por muitos outros influentes à época, com o jurista Edgar Costa, presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), para o qual o "voto demanda um mínimo de reflexão e discernimento", e entre senadores, como Fernandes Távora, para o qual a cédula de papel "impede que analfabetos possam votar".

Preencher uma cédula de papel pode até parecer uma tarefa trivial, mas, se considerarmos que esse instrumento de voto penaliza erros de escrita em uma população largamente analfabeta, o uso de cédulas de papel reduz a participação política daqueles que não sabem ler e escrever (Gingerich, 2019).

Foi apenas em 1996 que o sistema de votação passou a se dar através da urna eletrônica, sendo inicialmente adotada em municípios maiores, e, posteriormente em todo país.

Sua interface amigável exige que o eleitor apenas digite os números de seus candidatos, facilitando o voto ao guiar o passo a passo do processo, ao acrescentar recursos visuais (como a foto do candidato), ao usar números (no lugar de letras) sempre que possível e ao indicar falhas no momento da votação (como se o número lançado é válido ou não).

Ao todo, a introdução da urna eletrônica reduziu um importante obstáculo para a participação política dos menos escolarizados.

Em um estudo de 2015, Thomas Fujiwara corrobora essa hipótese e estabelece relação de causa e efeito entre a adoção da urna eletrônica e emancipação eleitoral da população.

A introdução da urna eletrônica aumentou o número de votos válidos (votos que não são nulos ou brancos) em eleições para deputado estadual em dez pontos percentuais (de 79% para 89%). Isso significa que parte do eleitorado só começou a ter seu voto contado de fato com a urna eletrônica.

Esse aumento na representação dos eleitores menos escolarizados na votação "real" teve efeitos na composição do gasto público: governos estaduais redirecionaram gastos para a saúde pública, aumentando-os em 34% no período de 1999 a 2006.

Além disso, esses gastos tiveram efeitos tangíveis na saúde das famílias, aumentando o número de visitas que mulheres grávidas fizeram com profissionais de saúde e diminuído a quantidade de recém-nascidos com baixo peso (menos de 2,5 kg).

Esses efeitos foram concentrados nas mães com o ensino fundamental incompleto, sem que as mães com mais educação fossem afetadas. Isso sugere que as políticas públicas mudam com os votos dos menos escolarizados, melhorando suas condições de vida.

Esses resultados não são surpreendentes. Diferentes cidadãos têm diferentes prioridades em relação as políticas públicas. Eleitores com menos escolaridade dão maior valor à saúde pública do que os com maior escolaridade, que têm mais condições de usar o sistema privado.

Quanto mais votos válidos vêm dos menos escolarizados, mais o sistema político responde atendendo suas demandas. Isso ocorre seja porque novos políticos que representam essa população têm mais chance de ser eleitos, seja porque os políticos incumbentes interessados em se reeleger "prestam mais atenção" em suas demandas.

Devido a essa lógica, diversos cientistas sociais argumentam que a má qualidade dos serviços públicos é causada pela baixa representação política das populações marginalizadas que mais se beneficiam deles.

A pesquisa descrita aqui confirma essa visão e mostra que melhoras incrementais no processo eleitoral, como remover obstáculos mundanos à participação política, ou "lubrificar as engrenagens da democracia", podem ter efeitos substanciais sobre a qualidade de vida das pessoas.

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