Cecilia Machado

Economista-chefe do Banco BoCom BBM, é doutora em economia pela Universidade Columbia

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Passando a boiada fiscal

Mais vale definir um arcabouço fiscal que permita o gasto proposto do que gastar sem planos

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Alguma coisa no pós-eleição está levando a classe política a acreditar que é possível gastar mais sem que seja necessário definir alguma regra para a evolução do gasto público, aumentar receitas de forma equivalente ou estabelecer quaisquer planos que garantam a sustentabilidade da dívida e estabilidade macroeconômica para um bom ambiente de negócios. Os argumentos são vários, mas poucos vão ao encontro da realidade.

Por exemplo, há argumentos relacionados a uma catástrofe social em curso, com o aumento da pobreza e da vulnerabilidade da população no pós-pandemia. Tal diagnóstico é incompatível com o aumento do orçamento dedicado às assistências, que mais que triplicou nos últimos dois anos. Também não é aderente à forte recuperação do mercado de trabalho e de uma taxa de desemprego que alcançou 8,3%, o menor nível desde 2015.

Contribui para essa visão a cobertura da imprensa, que enfatiza o aumento da pobreza usando dados defasados, ignorando que a tendência ao fim de 2021 é de queda. Estudo recente mostra que é bastante provável que a extrema pobreza esteja caindo continuamente em 2022, alcançando o menor nível da série histórica neste último trimestre.

Lula em entrevista à imprensa em Brasília durante transição de governo - Evaristo Sá 2.dez.22/AFP

Também existe a visão de que a arrecadação extraordinária pode dar espaço a mais gastos e desonerações. No caso do ICMS, que incide sobre combustíveis, energia e bens, a queda da arrecadação já se faz sentir no recente arrefecimento do preço das commodities, na redução das alíquotas do imposto e na reorientação da economia para o consumo de serviços.

Essa perda de receitas compromete importante fonte de financiamento dos estados e deixa em evidência que grande parte da arrecadação vem de componentes específicos da recuperação econômica no pós-pandemia, que não se sustentam de forma perene.

Por fim, circula a crença de que qualquer expansão de gastos gera benefícios inequívocos para a população, como no caso da valorização do mínimo. Mas sabemos que, quando a produtividade do trabalho não acompanha os ganhos salariais mandatórios, a consequência é a informalidade. Além disso, o mínimo é parâmetro para os benefícios previdenciários e concorre por recursos públicos com demais políticas sociais de maior eficácia.

É nesse ambiente de indefinição da regra fiscal que aparecem demandas pela expansão de gastos com argumentos duvidosos. O governo recém-eleito já deixou claro que a PEC da transição busca um waiver de R$ 200 bilhões. E tudo leva a crer que essa expansão será permanente: por mais que o Congresso tente estipular a excepcionalidade do waiver por apenas dois anos, sabemos que essa é uma promessa pouco crível. Um aumento de gastos em torno de 2% do PIB e as elevações dos prêmios de riscos associadas ao maior endividamento já colocam a dívida em trajetória perigosamente ascendente.

Mas, na esteira de uma flexibilização fiscal tão grande, os R$ 200 bilhões propostos pelo Executivo são apenas parte da história, e não param de aparecer pressões por mais gastos vindos também do Legislativo e do Judiciário.

O Senado se sentiu confortável para retomar a discussão dos quinquênios para juízes e membros do Ministério Público via PEC, sem apresentar nenhuma estimativa dos impactos fiscais dessa medida. Caso a categoria seja contemplada, não é difícil vislumbrar que o benefício seja estendido para os demais funcionários públicos.

Contribui para passar a boiada fiscal o próprio Judiciário, que recentemente referendou a revisão para a vida toda dos benefícios previdenciários do INSS, com impactos fiscais que podem chegar a até R$ 360 bilhões em 15 anos.

Fica claro que não há pressa para definir o novo arcabouço fiscal: o coordenador técnico da transição já disse que a discussão sobre uma nova regra fiscal deve ser feita ao longo do ano que vem para ter validade apenas a partir de 2024. E, assim, transmite a ideia de que é possível acomodar quaisquer gastos sem nenhum plano para garantir a solvência do Estado. A história recente dos países mostra que essa possibilidade não é real.

Sem uma regra clara, que explicite prioridades para Executivo, Legislativo e Judiciário, a expansão desenfreada dos gastos aumenta o risco de uma crise fiscal.

Mais vale definir um arcabouço fiscal que permita o gasto proposto do que gastar sem planos, correndo o risco de não haver regra fiscal capaz de sustentar a expansão de gastos que está sendo tacitamente realizada. Nesse caso, a ordem dos fatores importa. E muito.

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