Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Descrição de chapéu The New York Times LGBTQIA+

Americanos LGBTQIA+ podem se tornar nova classe de refugiados

Grupos minoritários nos EUA estão sendo pressionados a escolher entre conforto do lar e segurança

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The New York Times

Eleanor McDonough era assessora legislativa na Câmara do estado da Flórida. Segundo ela acredita, era a única pessoa abertamente transgênero trabalhando lá. Foi assim até que a onda de legislação opressiva e anti-LGBTQIA+ aprovada em Tallahassee se tornou pesada demais para ela suportar.

Há duas semanas, ela renunciou ao cargo e fugiu da Flórida para o estado de New Hampshire, a cerca de 2.500 km de onde morava. Como McDonough disse, virou uma "situação difícil" trabalhar no Legislativo e "ter pessoas debatendo sua existência tanto na Câmara quanto no Senado, sobre se você poderá usar o banheiro do prédio". "Quando você tem que dar uma olhada na história e no que outros autoritários fizeram na busca pelo poder, você precisa tomar uma decisão: até que ponto ficar é perigoso demais?"

Ativistas e apoiadores LGBTQIA+ realizam manifestação nos degraus da Suprema Corte, em Washington, por leis trabalhistas igualitárias
Ativistas e apoiadores LGBTQIA+ realizam manifestação nos degraus da Suprema Corte, em Washington, por leis trabalhistas igualitárias - Mary F. Calvert - 8.out.19/Reuters

McDonough não está sozinha entre pessoas trans, gays e famílias que percebem o perigo e consideram se mudar. Como Kelley Robinson, presidente da Campanha pelos Direitos Humanos, disse recentemente: "Pela primeira vez, ao menos na minha história no movimento, estamos vendo essa nova classe de refugiados políticos se mudando por acreditar que não estão seguros por conta própria".

São refugiados de gênero. Aqui, nos Estados Unidos, americanos.

De acordo com uma pesquisa da professora Abbie Goldberg, da Universidade Clark, publicada em janeiro pelo instituto Williams da Escola de Direito da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, "56% dos pais consideraram sair da Flórida e 16,5% tomaram medidas para sair". O estudo entrevistou 113 pais no estado que são LGBTQIA+ após a aprovação da lei estadual "Não Diga Gay".

O estudo descobriu que alguns entrevistados já estavam economizando e procurando empregos e casas em outros lugares. Mas o dilema de lutar ou fugir é preocupante porque, como aponta o estudo, boa parte se sentiu em conflito, já que teriam de se afastar de amigos, parentes e de comunidades que amavam.

Eles estão sendo pressionados a escolher entre o conforto de sua tribo escolhida e a segurança de suas famílias –algo que ninguém deveria ter que fazer. É uma situação que ressalta a perversidade das leis antitrans; elas não protegem, atacam. Como observa o estudo, algumas famílias com membros LGBTQIA+ enfrentaram maiores dificuldades. Afinal, muitos "cuidavam de familiares mais velhos ou outros dependentes, ou tinham empregos que não conseguiam encontrar em outro lugar".

"Para os pais LGBTQIA+ sem meios para se mudar ou enviar seus filhos para escolas particulares, o estresse que as legislações anti-gays criam será significativo", explica Goldberg.

Fugir da perseguição política é uma opção privilegiada que não é viável para todos, pelo menos em curto prazo. Uma família de destaque que resolveu deixar a Flórida é a do astro do basquete Dwyane Wade, que ganhou três campeonatos da NBA com o Miami Heat, e a estrela de cinema e TV Gabrielle Union.

Como o casal tem uma filha transgênero, Zaya, 16, o atleta disse que as leias da Flórida estavam entre as razões pelas quais eles decidiram se mudar. "Minha família não seria aceita ou se sentiria confortável na Flórida", disse Wade, em abril. "Por mais que eu ame aquela cidade, e por mais que sempre farei parte dela, não poderia voltar. Para a segurança da minha família, para mim foi isso".

Zaya Wade, filha trans do astro do basquete Dwyane Wade, chega para a 34ª premiação anual GLAAD Awards em Beverly Hills - Valerie Macon - 30.mar.23/AFP

Mas, é claro, Wade e Union têm flexibilidade e recursos financeiros que estão além do alcance de muitos.

De acordo com um relatório divulgado neste mês pela Campanha pelos Direitos Humanos, dos mais de 525 projetos de lei anti-LGBTQIA+ apresentados em todo o país nas sessões legislativas deste ano, mais de 220 têm como alvo a comunidade transgênero.

Rodrigo Heng-Lehtinen, diretor-executivo do Centro Nacional para a Igualdade Transgênero, disse-me recentemente que "as pessoas estão apavoradas, especialmente os pais de crianças transgênero".

"O tempo todo ouvimos falar de famílias que estão apavoradas, que estão enfrentando questões muito concretas e práticas: Meu filho está prestes a perder o plano de saúde? Ou: meu médico, nosso médico de família, que consultamos há anos, diz que não tratará mais meu filho", conta Heng-Lehtinen.

O medo e o desespero são tão grandes, disse Kelley Robinson, que ela conversou com pais que estão até pensando em dar a custódia de seus filhos trans a familiares em estados mais amigáveis. Essa situação não é apenas triste, é obscena e irritante. E está profundamente enraizada na desumanização e negação.

Na semana passada, um juiz federal da Flórida concedeu uma liminar para três jovens trans contra certas disposições de uma lei estadual destinada a proibir tratamentos de afirmação de gênero para menores. Na decisão, o juiz escreveu duas frases curtas que tocam profundamente porque muitas vezes parecem ser ignoradas na cruzada contra as pessoas trans: "A identidade de gênero é real. O registro deixa isso claro".

A realidade de que "variações na identidade e na expressão de gênero são aspectos normais da diversidade humana" deveria ser compreendida. Em vez disso, pessoas veem falsamente a diversidade de gênero –incluindo ser trans, não binário ou não conforme de gênero– como uma "última moda".

Eles veem a disforia de gênero –a angústia causada pela incompatibilidade entre o gênero de alguém e o sexo atribuído no nascimento– como uma escolha, não como uma condição médica. Eles confundem a condição com seu tratamento eficaz: a transição. E assumem que os indivíduos trans estão escolhendo o tratamento de afirmação de gênero com a mesma facilidade de escolher e comprar um sorvete.

Eles estão errados.

A transição pode ser cara e muitas vezes é dificultada por vários obstáculos. Uma pesquisa de 2023 da KFF e do jornal americano The Washington Post descobriu que apenas 31% dos adultos trans usaram tratamentos hormonais e apenas 16% passaram por cirurgia de afirmação de gênero.

A verdade é que a comunidade LGBTQIA+ e a comunidade trans, em particular, estão sendo intimidadas nesse debate, e a ignorância intencional em torno da identidade de gênero está sendo explorada.

Os americanos LGBTQIA+ estão sendo usados como peões numa batalha política. Estamos sendo usados como bodes expiatórios por golpistas. A segurança, mesmo a das crianças, está sendo insensivelmente sacrificada para que o favor público possa ser conquistado. É doentio. E colocou muitas pessoas LGBTQIA+ numa situação existencial impossível.

Neste ano, a legislatura de New Hampshire adotou propostas voltadas para estudantes transgênero e suas famílias. Mas McDonough diz que escolheu o estado como destino porque cresceu na Nova Inglaterra e tem família lá. Ela também me lembrou do lema do estado, "viva livre ou morra".

Para as pessoas trans a frase tem um significado urgente.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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