Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi
Descrição de chapéu Eleições 2018

Brasil, mas pode chamar de Macondo

Ressuscitem García Márquez, por favor

Era uma vez um país em que o candidato líder em todas as pesquisas eleitorais foi preso e acabou declarado inelegível pela corte competente para fazê-lo. Aí, nesse mesmo país, outro candidato passa para o primeiro lugar nas pesquisas, na ausência do líder anterior, e, de repente, cai no hospital.

Pelas avaliações mais recentes, corre o sério risco de perder o seu próprio voto, já que dificilmente poderá sair da cama (do hospital ou da sua casa) para votar.

Se a eleição for mesmo muito apertada, pode até perder a vaga no segundo turno por um voto —justamente o dele, o que seria uma tremenda ironia.

Esse país, como você já notou, chama-se Brasil. Mas, se se chamasse Macondo, seria mais apropriado.

Aliás, já escrevi mais de uma vez que Gabriel García Márquez seria o jornalista certo para contar a história do Brasil dos últimos muitos anos. Mestre do realismo mágico, estaria nadando de braçada na realidade brasileira. Afinal, como lembrou bem esse agudo observador que é Hélio Schwartsman, atribui-se a Mark Twain a frase “por que a verdade não seria mais estranha que a ficção?”

Fiz essa sugestão diretamente a Gabo, em jantar na véspera da entrega, por suas próprias mãos, do prêmio que a fundação que criara me outorgou pelo chamado conjunto da obra (é, até o grande Gabo se equivoca).

Lembrei o episódio Tancredo/Sarney em 1985: um homem que se gabava de jamais ter tido nem sequer um humilde resfriado baixa ao hospital horas antes de tomar posse e só sai de um hospital para outro e deste para o cemitério.

Com um detalhe nada trivial: tratava-se do primeiro presidente civil a ser eleito, embora indiretamente, depois de 21 anos de ditadura militar. Ou seja, o que estava em jogo ali era a transição para a democracia.

Com Tancredo no hospital, assume José Sarney, que havia sido até pouco antes o presidente do partido de sustentação da ditadura, a mesma ditadura que Tancredo deveria sepultar e que acabaria sendo sepultada por Sarney.

O realismo mágico não termina aí: Sarney, sem a legitimidade e a consequente popularidade da eleição direta e nem mesmo a relativa legitimidade da indireta (elegera-se apenas vice-presidente), torna-se, não obstante, um grande ídolo popular ao decretar o congelamento de preços.

É ou não é Macondo?

Agora, 33 anos depois, o país que elegeu o que seria um cadáver antes de ser presidente de fato corre o risco de eleger outro cadáver. Calma, bolsonaristas de plantão, não estou agourando ninguém. Estou simplesmente apontando uma possibilidade real. Há, sim, risco de morte para o candidato.

Se serve de compensação para esse cheiro de Macondo no ar, há dois aspectos de aggiornamento nesta oitava eleição desde a redemocratização: primeiro, a presença aberta da extrema direita na disputa.

É nefanda a defesa da ditadura e da tortura que essa gente faz, mas, ainda assim, é melhor que se exponham à luz do sol, em um processo eleitoral, do que conspirem nas sombras como fizeram até chegar ao golpe de 1964.

Segundo, o fato de os liberais terem saído finalmente do armário e se apresentarem abertamente ao eleitor, espalhados por mais de uma candidatura.

Os liberais brasileiros, pelo menos os do passado recente, têm uma mácula inapagável: apoiaram a ditadura, que suprimiu todas as liberdades, o que liberal algum deveria respaldar.

Liberais que apoiam —e até participam— da supressão das liberdades é outro aspecto macondiano (sem contar que o regime militar foi estatizante a mais não poder).

É saudável, pois, que extrema direita e liberais estejam agora disputando votos em vez de pegarem carona nos tanques.

Um avanço da extrema direita seria até coerente com o cenário mundial, em que partidos populistas dessa cepa estão conseguindo votações expressivas. Enquanto o fizerem dentro das regras do jogo, tudo bem. Na Noruega, desde 2013, o Partido do Progresso, de extrema direita, faz parte do governo com o Partido Conservador, pela primeira vez na história.

Não impede que a Noruega seja o país em primeiro lugar no ranking de Desenvolvimento Humano elaborado pela ONU e também o primeiro lugar no ranking de qualidade da democracia, elaborado pela Universidade de Gotemburgo (Suécia).

O que me incomoda é que não estamos na Noruega, mas em Macondo —e em Macondo ideias exóticas e francamente execráveis sempre têm grande chance de prosperar.

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