Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

A presença de Evita, aos 100

Foi extraordinária influenciadora (e a palavra nem existia)

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Era um 7 de maio como esta terça-feira, mas de 1981. Acabava de assumir o posto de correspondente desta brava Folha em Buenos Aires e resolvi levar a família (mulher e três filhos) para conhecer o cemitério da Recoleta.

É um ponto turístico da capital argentina, às vezes comparado ao cemitério parisiense de Père Lachaise. É também um passeio pela história da Argentina, tantas são as figuras que a fizeram ali sepultadas.

A filha do meio, a Clarissa, ficou incomodada logo no início do passeio, por haver túmulos devassados. Impressionável, achava que dava para ver esqueletos.

Mas o incômodo transformou-se em pânico quando ouvimos ao longe o coro “se siente, se siente/Evita está presente".

Mulheres vestidas como participam de manifestação nesta segunda (6) em Buenos Aires, um dia antes do centenário de nascimento da ex-primeira-dama
Mulheres vestidas como participam de manifestação nesta segunda (6) em Buenos Aires, um dia antes do centenário de nascimento da ex-primeira-dama - Juan Mabromata - 6.mai.19/AFP

Murmurou algo como “pai, vamos embora, como Evita pode estar presente, se ela morreu faz tanto tempo?” (fazia, naquela altura, 29 anos).

Ao dobrar a esquina para chegarmos ao mausoléu de Maria Eva Duarte de Perón, vimos um grupinho que celebrava mais um aniversário de sua morte. Celebrava, não; rezava para aquela a que haviam beatificado, a santa Maria Eva de Los Desamparados.

Nesta terça-feira de 2019, faz exatamente 100 anos que Evita está presente. Tanto está que há uma série de atos previstos para lembrar o centenário.

A permanência de Evita no coração dos peronistas - que adoram dizer que são a metade mais um dos argentinos - me impressiona e me intriga.

Uma vez, antes dessa visita ao cemitério, eu e minha mulher fomos a uma cripta já nem me lembro aonde exatamente em que estavam expostos os corpos dela e de seu marido, o general Juan Domingo Perón, por três vezes presidente da Argentina.

O caixão de Perón estava fechado, com o quepe de general em cima. Mas Evita estava exposta, de vestido branco longo, rosto bonito, cabelos loiros tão arrumados que dava a sensação de que saíra do cabeleireiro havia apenas alguns instantes.

A devoção demonstrada pelos visitantes era a mesma que veríamos depois no cemitério. E eu veria depois e depois e depois em incontáveis atos peronistas, mesmo durante a ditadura do período 1976/83.

Claro que Evita não é - nunca foi - uma unanimidade na Argentina. Desperta tanto ódio quanto suscita a devoção de seus fieis. Mas é a única figura política que, depois de morta, se tornou uma popstar, até no exterior, encarnada por Madonna no filme Evita e na canção “Don't cry for me, Argentina".

Para ser bem sincero, eu não entendo esse tipo de fenômeno, talvez por ser cético de profissão. Tampouco me agrada a idolatria a quem quer que seja.

Mas, na Argentina, há quem acredite no que diz a canção-tema de Evita, que traduzo livremente:

“A fortuna e a fama/Eu nunca as convidei/

Embora parecesse ao mundo que era tudo o que eu desejava/

São ilusões, não são as soluções que prometiam ser/

A resposta estava aqui o tempo todo/

Eu te amo, e espero que você me ame/

Não chore por mim, Argentina".

Cem anos depois de Maria Eva nascer, 67 anos depois de morrer, presidentes vieram e se foram, uma ditadura veio e se foi, veio a democracia, mas, ao longe, ainda se ouve, embora bem mais débil, o “se siente/se siente/Evita está presente".

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