Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Descrição de chapéu Folhajus

Ao miserável, nem mesmo a Justiça justa

Para Augusto Aras, não basta mediocrizar a PGR, é preciso mutilar a Defensoria Pública

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A Constituição de 1988 pode exibir ao constitucionalismo universal duas instituições arrojadas e originais: Defensoria Pública e Ministério Público.

Não se confundem com as versões antigas do serviço de assistência jurídica aos pobres ou com as promotorias de acusação penal. Formam engrenagens potentes para dar tração institucional às promessas de inclusão e redução de desigualdades.

O Ministério Público deve promover "defesa da sociedade" (na ação penal, mas também em tantas outras áreas como meio ambiente, consumidor, pessoas com deficiência, crianças e adolescentes etc.).

À Defensoria Pública incumbe assistência jurídica gratuita aos vulneráveis. Portanto, a defesa da sociedade também. Natural que, entre as duas, haja um grau de sobreposição de funções. Sem coordenação, surgem conflitos.

A relação nunca foi harmoniosa e equilibrada. A Defensoria, construída do zero a partir da redemocratização, estado por estado da federação, carece de peso político comparável ao Ministério Público, que já gozava de história institucional e carreira enraizada nos canais da magistocracia.

A Defensoria seguiu como prima pobre, subfinanciada e com déficits maiores de pessoal e infraestrutura se comparadas as carreiras. Mas, em poucas décadas, revolucionou o acesso à Justiça.

Para Bryant Garth, dos maiores estudiosos do assunto, a Defensoria brasileira é "das instituições mais proeminentes no mundo associadas com o acesso à Justiça".

Propiciou aos necessitados serviço gratuito que, em grau de competência, profissionalismo e abrangência, o país nunca teve. O assistencialismo da advocacia privada jamais poderá estar à altura da missão.

Por insuficiência de recursos e braços, a Defensoria limita seus assistidos por faixa de renda. Seu atendimento está disponível aos 25% mais pobres da população brasileira. Os 50% acima, também incapazes de pagar por serviço jurídico privado, permanecem no limbo do inacesso à Justiça.

A Defensoria não tem poder apenas para litigar judicialmente, mas competências extrajudiciais para prevenir litígios; não só em casos individuais, mas também em causas coletivas.

Para exercer a complexa tarefa com eficiência, pode exigir de entes públicos e privados, sem intermediação judicial, documentos, informações, diligências etc. O chamado "poder de requisição", que o Ministério Público também tem.

Assim, a Defensoria resolve algumas demandas urgentes da miséria brasileira sem bater na porta do juiz, sem consumir recurso e tempo judiciais. E consegue construir ações judiciais coletivas com lastro documental que a população pobre simplesmente não tem (diferentemente de mim e você).

Augusto Aras, ecoando tradição do canibalismo magistocrático, questionou o poder de requisição. Não do Ministério Público, mas da Defensoria.

Propôs 22 ações no STF que alegam inconstitucionalidade desse poder das defensorias no país. Numa das ações, Gilmar Mendes, relator, concordou com Aras. Fachin suspendeu o julgamento. O caso volta à pauta do STF nos próximos dias.

Aras argumenta que esse poder quebra o "equilíbrio da relação processual" e fere a "paridade de armas" entre defensores públicos e advogados.

Vigente há mais de 20 anos, nunca questionado pela advocacia, sem nenhuma prova de que tenha sido abusado pela Defensoria, o poder de requisição agora é questionado pelo chefe do Ministério Público em defesa da advocacia. E Gilmar, no tempo recorde de três meses, soltou seu voto.

A decisão é juridicamente cega, institucionalmente trágica e socialmente perniciosa. Também "rastaquera", como Gilmar gosta de dizer dos outros.

Cega porque a lei já admite diferenciações entre direitos das partes de um processo. E nem mesmo com esse poder a Defensoria "reequilibra" as forças, apenas atenua a desvantagem de assistidos.

E nem vale lembrar das portas VIPs que advogados influentes têm nos tribunais, porque miseráveis não litigam contra eles. Suas urgências são mais existenciais: a fome, a saúde, a proteção contra violência estatal.

Trágico porque levará ao aumento da judicialização e à redução da já limitada população de assistidos que a Defensoria conseguirá atender. Pernicioso porque só fará aumentar a desigualdade do serviço jurídico e da prestação jurisdicional.

Na fantasia macabra de Aras e Gilmar, se advogado da Samarco, em escritório na Faria Lima, não tem poder requisitório, por que defensor público que pede acesso a água para crianças e idosos em Mariana deveria ter?

Em artigo clássico, Galanter mostra que a riqueza é determinante no resultado judicial ("Why the Haves Come Out Ahead"). Para reduzir o abismo, o serviço jurídico a vulneráveis precisa de capacidades especiais. O "poder de requisição" dá modesto passo nessa direção.

Aras discorda. Ao miserável, nem mesmo a Justiça justa. No máximo, a justiça mínima, desdentada, exaurida.

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