Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

Confiar nas instituições?

A ideia da corrupção generalizada da polícia seduz por sua coerência histórica e teórica

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Ilustração Contardo Calligaris
Mariza Dias Costa/Folhapress

Não sabemos quem assassinou Marielle Franco e Anderson Gomes e por quê. Mas tudo nos leva a crer que foi uma execução punitiva, por algo que Marielle aprendeu, suspeitou, denunciou, se não apenas por ela ser uma ativista em favor dos pobres, das mulheres e dos negros do Rio de Janeiro.

O assassinato parece ter sido a obra de homens treinados e organizados, e não de um simples destacamento de traficantes.

A maioria das pessoas com quem converso pensa, portanto, que os assassinos foram a "banda podre" da polícia ou as milícias (quem não sabe o que são milícia e banda podre no Rio, assista a "Tropa de Elite 2").

Dentro dessa maioria, muitos entendem que, na polícia carioca e talvez brasileira, só existem banda podre e milícia. Essa ideia da corrupção generalizada da polícia (e talvez da própria Justiça, se não do Exército) seduz por sua coerência histórica e teórica.

A coerência histórica vem do fato de que os governos e presidentes democráticos que se seguiram desde o fim da ditadura até Dilma não evitaram a necessidade de alianças com as bandas podres da política. A suposta "modernização" do país passou por compromissos que talvez tenham vendido o essencial da esperança democrática. Coerência, então: se o país ainda é governado pela banda podre da política, como polícia, Justiça e Exército não seriam expressão da mesma podridão?

A coerência teórica é que, numa análise supostamente marxista (e simplória), as forças da ordem sempre estariam às ordens das classes dominantes. No Brasil, em que as classes dominantes seriam uma versão botoxada dos antigos senhores (exploradores, escravocratas, sem identificação com o projeto de nação), as forças da ordem seriam a versão botoxada dos antigos capangas e jagunços.

Quem pensa assim, claro, não tem como acreditar que a Lava Jato possa moralizar a política —pois, para ele, é impossível confiar nas instituições democráticas. O que dizer aos amigos que estão nesse desespero? Houve um momento da história recente da Itália em que pensei como eles, por um tempo.

No fim de 1969, uma bomba explodiu na Banca da Agricultura, em Milão, matando 17 pessoas e ferindo 88. Começavam assim os anos de chumbo. As indagações concentraram-se nos anarquistas, entre eles Giuseppe Pinelli, um ferroviário que morreu caindo da janela do quarto onde estava sendo detido pela polícia. Foi aberto um inquérito sobre a morte de Pinelli, mas, sem esperar sua conclusão (que, mais tarde, inocentou os policiais investigados), o movimento e jornal Lotta Continua, com boa parte da esquerda, convencidos de que os policiais eram todos jagunços, apontou para o Comissario Luigi Calabresi: abaixo-assinados circularam declarando-o culpado pela morte.

Tive sorte, não assinei nenhum, mas, confesso, foi porque estava longe, na Suíça.

Calabresi foi assassinado em 1972, por militantes de Lotta Cotinua; os responsáveis pelo jornal e pelo movimento foram também condenados como mandantes.

Quem quiser saber mais, leia "Spingendo la Notte píú in lá" (empurrando a noite mais para lá, Mondadori), de Mario Calabresi, filho do policial assassinado e hoje diretor do jornal La Repubblica.

Seja como for, entre 70 e 71 foi o fundo do poço: pensávamos que nenhuma instituição pudesse ser a expressão de um interesse comum da nação (da simples legalidade, por exemplo). Por isso mesmo, alguns, naqueles anos, foram para a luta armada e não voltaram. Outros (os comunistas) continuaram acreditando que algumas instituições (a magistratura e a própria polícia) ainda pudessem servir o interesse nacional, acima do da classe dominante. Essa aposta incerta permitiu que, a médio prazo, o país saísse dos anos de chumbo e que, mais tarde, a operação Mani Pulite revelasse o mais podre da política italiana.

Hoje, o mundo político italiano é muito diferente do que eu gostaria que fosse, mas, mesmo assim, é melhor do que em 69 ou 70.

Quando evoco essa aposta nas instituições democráticas, que os comunistas italianos fizeram naquela época, alguns amigos me veem como uma Pollyana e acrescentam que não podem se iludir: a ditadura militar acabou só 33 anos atrás.

Pois é, se esse for o argumento, vale lembrar que, em 1970, o fascismo italiano tinha desmoronado havia apenas 25 anos.

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