Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Meditação pascoal

Será que a Igreja quer reabilitar Eva e as mulheres? 

Entrando na “Scuola di San Giorgio degli Schiavoni”, em Veneza, o primeiro quadro à esquerda representa São Jorge derrotando o dragão, por Vittore Carpaccio.

Reza a lenda que perto de uma cidade do norte da África havia um dragão. Para acalmá-lo, os habitantes lhe ofereciam duas ovelhas por dia e, quando faltaram as ovelhas, um jovem ou uma jovem e uma ovelha. Os jovens sacrificados eram sorteados, e chegou a vez da filha do rei. Jorge, que era soldado e passava por aí, prontificou-se para enfrentar o monstro.

A Scuola era pertíssimo da minha casa, e eu, criança, revia São Jorge e o dragão com frequência. Adorava a coragem daquela figura de armadura, que enfiava a lança na goela do bicho. No pano de fundo do enfrentamento, além da princesa, que esperava conhecer seu destino, havia os restos das “refeições” anteriores do dragão.

No meio do quadro, dividindo o espaço em dois, havia uma árvore curiosa: do lado direito, ela tinha folhas, enquanto, do lado esquerdo, ela parecia morta. Claro, o lado direito é o do bem, onde estão Jorge e, no fundo, a princesa; o lado esquerdo é o do mal, onde está o dragão.

Essa árvore metade do bem e metade do mal evoca obviamente a famosa árvore da ciência do bem e do mal, da qual nunca entendi direito por que Deus não queria que Adão e Eva comessem o fruto. E, como cada um sabe, Eva foi quem se atrapalhou.

Justamente, no quadro de Carpaccio, em baixo da árvore que divide o quadro, há os restos de uma das jovens que o dragão devorou. O baixo-ventre desse cadáver feminino se situa à esquerda da linha da árvore, ou seja, do lado do mal.

Nada de muito original: quando Carpaccio pintava, nos primeiros anos de 1500, era normal pensar que a mulher (Eva) fosse a fonte da tentação e do pecado, cúmplice do demônio, decididamente “do mal”.

A gente, aliás, poderia temer pela alma de São Jorge: se ele vencer o dragão, será que ganharia o amor da princesa? Se assim fosse, para os doutores da Igreja do seu tempo (Paulo, Tertuliano, Jerônimo, Agostinho), não só sua santidade mas também sua salvação básica seriam comprometidas.

Por sorte, o terceiro quadro da série nos tranquiliza: Jorge recusa a princesa e, por ter liberado a cidade do dragão, pede só que o rei e a princesa se convertam ao cristianismo.

Pensei nessas histórias da minha infância quando fui rever, mais uma vez, os Carpaccios da “Scuola” de São Jorge ao sair da missa solene de Páscoa, na basílica de São Marco.

A homilia do patriarca, Francesco Moraglia, retomou os Evangelhos de Marco (16, 1-8) e de João (20, 1-18) para evocar o que aconteceu na manhã da primeira Páscoa.

Os evangelistas narram que foram as mulheres que descobriram a tumba de Cristo vazia —as mesmas mulheres que, na vigília, “tinham observado com atenção o lugar onde Jesus estava sendo sepultado”. Segundo Marco, eram as três Marias: Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Maria Salomé.

Dos apóstolos, a homilia diz, “um dos 12 o traiu, outro o renegou, todos —salvo o mais jovem (João)— fugiram”.

Ilustração
Publicada nesta quinta-feira, 5 de abril de 2018 - Mariza Dias Costa/Folhapress

Claro, os homens tinham uma desculpa: eles corriam riscos maiores se fossem identificados como seguidores de Jesus. Enquanto as mulheres não seriam perseguidas só por querer perfumar o corpo do Jesus com óleos, como era costume.

Mesmo assim, a homilia parecia concluir com a ideia de que as mulheres foram as mais fiéis a Cristo:
“Os eventos mais íntimos de Cristo —sua morte e sua ressurreição— colocam em evidência, com simplicidade, a grandeza da mulher. Nossa sociedade, nossa cultura e mesmo nossa Igreja devem se deixar plasmar mais pelo Gênio feminino para descobrir-se mais ricas de verdadeira humanidade e do sentimento de Deus”.

Será que (por virtude ou por necessidade, tanto faz) a Igreja está começando a considerar a possibilidade de ordenar mulheres? Se isso acontecesse, seria a revisão do mito (eternizado pelo Carpaccio) da mulher como extensão do demônio, tentadora e responsável por quase tudo o que é mal (inclusive —e não é pouca coisa— por nossa mortalidade)?

Claro, seria (será?) um longo processo, um século ou mais, mas a Igreja talvez pudesse liderar uma extraordinária mudança cultural e colocar um fim ao período de 3.000 anos de ódio pelas mulheres em Ocidente —um período o qual ela mesma contribuiu a inaugurar e a alimentar.

É mais um sonho de Páscoa, não é? E Páscoa foi primeiro de abril…

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