Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Menores prostituídos

Minha perplexidade tem a ver com o desejo dos que buscam esses serviços sexuais

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

Na quinta-feira (24), a Folha publicou o especial "Exploração Sexual Infantil 2ª Edição". Sobre esse tema, tenho há tempos uma perplexidade que não consigo resolver e que vou tentar expor.

Começo assinalando a entrevista de Amara Moira (por Iara Biderman) na última página do caderno. Moira, autora de "E Se Eu fosse Puta" (ed. Hoo), talvez seja hoje a voz mais certeira quando se fala em prostituição —um pouco como era Gabriela Leite nos anos 1980 e 1990.

No começo da entrevista, Moira afirma, com razão, que "falar em prostituição infantil é inaceitável", porque significa relacionar "uma profissão reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações com algo criminoso".

A prostituição, no Brasil, é uma atividade legal (o que não é legal é explorar a prostituição). A partir de 14 anos é possível consentir a uma relação sexual com outro (a não ser que se trate de um outro especial, que se aproveitaria de sua autoridade para "convencer" o/a menor —pastor, professor, médico, padrasto, madrasta, um dos pais etc.).

A partir dos 18 é possível se casar sem a autorização dos pais e/ou se prostituir. Antes dos 18, ninguém "se" prostitui: o menor está sendo prostituído por quem o vende e o explora ou, então, se não houver intermediários, ele está sendo vítima de seus clientes, que abusam dele. Concordo com esse quadro legal.

Minha perplexidade tem a ver com o desejo dos que buscam e compram os serviços sexuais de menores.

Nas "zonas" do interior do Brasil, nas beiras de estrada e nas avenidas da prostituição urbana, é possível que uma parte dos "clientes" escolha as/os menores simplesmente por elas/eles serem, em geral, mais baratas/os. Mas os outros, os que preferem e procuram mesmo um menor prostituído, o que eles querem?

A resposta mais apressada evoca a "pedofilia" dos clientes. Ora, justamente, no caso, a única coisa que podemos descartar com segurança é a pedofilia. Explico.

A fantasia do pedófilo é a de "iniciar" sexualmente uma criança, levando-a a praticar atos que ela nem sequer entende direito. O modelo insuperado da fantasia pedofílica é aquele padre que explicava a seu coroinha que o sexo oral era a forma mais perfeita da santa comunhão. A fantasia pedofílica é pedagógica e supõe que a vítima seja ignara e "inocente".

Por isso mesmo, o pedófilo não gosta de menores prostituídos. Eles não são as crianças ignaras que ele deseja: são crianças sexualizadas pela própria prostituição que foi imposta a elas. Claro, o cliente pedófilo poderia montar um cenário em que o menor faria o papel do coroinha inocente ou da estudante do ensino fundamental, mas duvido que os menores prostituídos tenham as qualidades de ator necessárias para isso.

Será, então, que os clientes dos menores prostituídos têm simplesmente uma certa preferência por "carne fresca"? Talvez essa preferência genérica explique tal ou tal outra escolha de menores que, às vezes, aparentam ser próximos da idade legal, mas duvido que ela explique a existência de um mercado de crianças prostituídas, que sobrevive apesar do risco legal que correm seus clientes. Em suma, se não for a pedofilia, o que é que leva os clientes a procurar menores prostituídos?

Não sei. Mas constato que as crianças prostituídas são um estranho paradoxo cultural.

Elas são crianças totalmente afastadas da infância idealizada, que é uma das invenções mais peculiares de nossa cultura. As crianças prostituídas não vivem numa ficção paradisíaca, habitada por seres inocentes e nunca atormentados pela necessidade ou pelo desejo. Ao contrário, elas são crianças sem a proteção de nossa idealização.

Não por acaso, elas vêm do lote das crianças já excluídas da infância —pobres, miseráveis, de rua: crianças às quais desistimos de oferecer uma infância e com as quais, portanto, é permitido fazer de tudo.

No fim do século 18, a nossa cultura inventou a infância e passou a protegê-la atrás do amor narcisista dos pais (preservamos nossos rebentos para vê-los felizes como nós não fomos e nunca seremos).

No mesmo momento, em 1785, o Marquês de Sade escrevia os "120 Dias de Sodoma" (ed. Penguin Companhia), em que o martírio de meninos e meninas alimenta o desejo descomedido de quatro libertinos.

Conclusão? No momento, uma hipótese: se idealizássemos menos a infância, não precisaríamos estraçalhar crianças, só para compensar.

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