Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Estamos nas mãos de Musk e Zuckerberg, oportunistas desprovidos de ética

Um computador ser capaz de aprender por conta própria me apavora menos do que o poder dos CEOs das big techs atuais

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No fim de uma entrevista recente que concedi ao programa Roda Viva, Marcelo Tas me perguntou se eu tinha uma visão pessimista ou otimista com relação à inteligência artificial. Já cansada, dei uma resposta protocolar. Depois, pensei que a ideia de um computador ser capaz de aprender por conta própria me apavora menos do que o poder dos atuais CEOs das big techs sobre o computador que aprende por conta própria.

Estamos nas mãos de Elon Musk e Mark Zuckerberg, oportunistas desprovidos de ética, que fariam o filósofo Immanuel Kant revirar no túmulo com seu imperativo categórico.

Quando comprou o Twiter, o autointitulado "free speech absolutist" Musk declarou que desejava transformar a plataforma num jogo interativo de PVP —player versus player—, onde os "participantes poderiam brigar e atacar uns aos outros em contas pessoais verificadas". Zuckerberg já havia descoberto o valor agregado da futrica e da maledicência com seu Facebook, que teve origem no bullying universitário da Ivy League.

A IA pode vir a descobrir a cura para o câncer, mas, com esses moços no comando, as chances de acabarmos extintos por um PVP movido a jogadores de carne e osso aumenta de forma considerável.

E é por isso que louvo, aqui, quatro produções medianas da Apple TV que partiram, creio, de um esforço da empresa de relembrar os americanos dos valores democráticos que os fundaram. Falo de dois documentários caretíssimos, o "O Dilema de Lincoln" e "Benjamin Franklin", e de duas séries ficcionais medíocres, "Manhunt" e "Franklin".

Do lado esquerdo: para ilustrar os assuntos IA e valores democráticos estadunidenses está o texto de uma consulta feita no ChatGPT. Do lado direito, na cor sépia: imagem de parte do documento original da Constituição dos Estados Unidos de 1789 --- em destaque, as primeiras palavras do documento, "We the people" (Nós, o povo").
Marta Mello

Com Trump despontando nas pesquisas de intenção de voto, apesar de sentado no banco dos réus, e outro homem negro morto por asfixia numa batida policial, usar a história como espelho para reflexões deste presente escatológico pode incutir no público alguma semente de sanidade.

Nenhuma das produções citadas possui a qualidade de "Five Came Back", de Laurent Bouzereau, sobre os cinco cineastas de Hollywood enviados para o front da Segunda Guerra; de "The Vietnam War", de Ken Burns e Lynn Novik, que relembra a grandeza de Ho Chi Minh; e muito menos de "Dr. Fantástico", de Stanley Kubrick.

São obras simplórias, como uma aula bem-acabada do Mobral, mas que resgatam os ideais de liberdade e igualdade defendidos por dois grandes americanos, além de discutirem o legado nefasto da escravidão.

Para aqueles que, como eu, tem um conhecimento raso da história americana, "O Dilema de Lincoln" ressalta a importância do intelectual abolicionista negro Frederick Douglass, que demoveu Lincoln da ideia de mandar os escravizados para a Libéria, na África, e o ajudou a se convencer de que a Guerra da Secessão era uma batalha pela abolição.

Lincoln foi assassinado cinco dias após a vitória sobre os confederados e o documentário também aborda o retrocesso causado pela ascensão de Andrew Johnson, vice que foi alçado à presidência, alinhado com o Sul racista.

A série ficcional "Manhunt" faz dueto com o documentário e narra a caçada ao ator John Wilkes Booth, autor do tiro que matou Lincoln num teatro. O ponto alto da produção para a tevê é o paralelo que traça entre a invasão do Capitólio de 2021 e a conspiração assassina de 1865.

E, como um fio puxa o outro, acabei assistindo ao "Franklin", de Ken Burns, sobre o genial Benjamin. Lento, longo e detalhista, o documentário vale pelo personagem e é bom de informação.

Benjamin Franklin foi um autodidata, tipógrafo, escritor, jornalista, aforista, político, embaixador e cientista, um iluminista do Novo Mundo, plebeu, prático e terreno, que vislumbrou a necessidade de união entre as colônias americanas. Franklin descobriu a eletricidade presente na atmosfera, com uma chave amarrada a uma pipa, inventou o para-raio e foi chamado de Prometeu por Kant. Aclamado na Europa, foi defenestrado na Inglaterra, como traidor da Coroa.

Franklin também levantou recursos para a guerra de independência na corte de Maria Antonieta e participou da elaboração da Constituição Americana, tema da série ficcional "Franklin", estrelada Michael Douglas. Essa, leitor, pode pular, é inassistível.

Benjamin Franklin e Abraham Lincoln foram senhores de escravizados, mas ao defenderem a igualdade como valor inarredável de seu país, compreenderam que a América era incompatível com a escravidão.

No Brasil cordial, tão afeito a conchavos e a conflitos não declarados, a Revolta das Chibatas continua a ser vista como um ato de insubordinação e não de justiça. Talvez, por aqui, Frederick Douglass e, quiçá, Benjamin Franklin, receberiam o mesmo tratamento dado ao Almirante Negro João Cândido, ainda considerado um arruaceiro pelo comandante da Marinha Marcos Sampaio Olsen.

É o nosso lado desta história, que rendeu a mais bela canção de Aldir Blanc e João Bosco.

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