Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

O patriotismo dos cachorros

Ainda há perdidos que não se envergonham de bradar o seu nacionalismo

A cada ano, a academia do Emmy internacional revisa uma quantidade monstruosa de programas televisivos produzidos mundo afora (os EUA, pelo tamanho de sua produção, têm seu próprio Emmy). Das primeiras rodadas seletivas saem os finalistas —4 em 11 categorias.

No fim de semana passado, um festival apresentou todos os finalistas e atribuiu o Emmy do ano aos vencedores.

Estive na festa três anos atrás, quando a série “Psi”, que escrevo e produzo para a HBO, foi finalista competindo em melhor série dramática, e o protagonista, Emílio de Mello, foi finalista competindo como melhor ator.

Ilustração de Mariza Dias Costa para Contardo Caligaris de 22.nov.2018.
Mariza Dias Costa

Neste ano, vim para prestigiar Denise Weinberg, que foi finalista como melhor atriz pela sua participação na terceira temporada de “Psi”.

Entre essas duas ocasiões, no ano passado, fui chamado para ser jurado, selecionando programas asiáticos. Em suma, conheço o funcionamento do prêmio e de seu festival final. Mas neste ano senti algo diferente.

Como é tradição, no sábado de manhã, Bruce Paisner, presidente da Academia Internacional das Artes e Ciências Televisivas, abriu a cerimônia de distribuição das medalhas.

Foi uma fala rápida, com agradecimento aos patrocinadores, e, enfim, uma observação: a academia, ao selecionar e premiar, procura reconhecer a excelência na arte de fazer televisão, sem se importar com o país ou o continente onde ela se manifestou (os finalistas deste ano são, como sempre é o caso, de muitos países e de todos os continentes).

Óbvio, não é? Sequer dá para imaginar alguém afirmando que, na Academia, cada jurado defende seu país, em vez de selecionar talentos independentemente da origem e de onde eles vêm. Quem ficasse embasbacado com sua “produção nacional” passaria, justamente, por um babaca.

Mas, no sábado, a fala de Paisner não pareceu trivial: ela ressoou como um ato de resistência contra a ressurgência da evocação despudorada de sentimentos nacionalistas e patrióticos.

No caso do Brasil, aparentemente teremos um ministro das Relações Exteriores que brada seu nacionalismo e patriotismo contra o que lhe parecem ser os horrores da globalização.

Sem dúvida, haverá pessoas para replicar essa posição bizarra, porque esse é o mecanismo tradicional na governança populista (foi assim no fascismo e no nazismo europeus): homens públicos proclamam em voz alta algo que a maioria, até então, achava vergonhoso pensar e que alguns diziam só em surdina.

Com isso, qualquer besteira que o populista diga vai aparecer como a “ousadia” de enfim afirmar o que “todos” pensavam e reprimiam. Na maioria dos casos, trata-se de sobras de ideias e crenças atropeladas por mudanças radicais com as quais, por uma razão ou outra, alguns indivíduos não se deram bem. Explico.

O começo da cultura moderna ocidental se deu com o cristianismo, que afirmou de maneira inédita a dignidade e a liberdade do indivíduo, contra qualquer tribo. O Deus cristão não é Deus de uma nação ou de uma raça, nem mesmo de uma família ou de um gênero: ele se propõe a ser o Deus de todos, mundo afora, porque os fiéis respondem para ele individualmente, um a um.

Quem não aguentou (e ainda não aguenta) a novidade cristã fica mastigando sobras do passado tribal: ranços de racismo, machismo e nacionalismo.

Esses três afetos antimodernos são profundamente anticristãos e ainda mais anticatólicos. Cuidado: isso, não por alguma generosidade cristã para com os outros, mas porque o cristianismo é o inventor da modernidade globalizada —uma religião, não para a aldeia, mas universal, para o gênero humano em todas suas diferenças.

Nossa modernidade avança de um jeito que não é linear: há idas e voltas. Houve o refluxo da época romântica, com a volta do tribalismo nacional no século 19 e na primeira metade do século 20.

Aparentemente, a catástrofe das guerras do século passado não foi suficiente. Ainda há perdidos que não se envergonham de bradar o seu nacionalismo.

É chato, mas aqui, na festa do Emmy, com centenas do mulheres e homens reunidos pela vontade de contar histórias que falem para todos e para cima de qualquer fronteira, sinto que a batalha não está perdida. Nem de longe.

Afinal, sempre há cachorros latindo quando as caravanas passam. Alguns cachorros mordem, matam e até impõem desvios, mas nunca conseguem impedir que a caravana passe.

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