Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Os toscos e os boçais

O tosco-boçal tem opiniões por puro preconceito e quer impô-las aos outros

Ilustração de Mariza Dias Costa para Contardo Caligaris de 25.out.2018.
Mariza Dias Costa

Não tenho fé na Razão com "r" maiúsculo, mas tenho alguma fé na capacidade humana de se instruir, pensar e dialogar. Essa capacidade é antiga e passou por muitos altos e baixos.

Entre os séculos 15 e 18, no Ocidente, foi um dos altos: muitos redescobriam a alegria de estudar, argumentar, ler, escrever, mudar de ideia, criticar aos outros e a si mesmos.

Tudo isso nunca tinha parado de acontecer, mas, especialmente nos séculos 15 e 16, muitos correram o risco de renunciar às baboseiras nas quais a maioria acreditava até lá —e acreditava por consideração pelas autoridades constituídas (ou por medo delas) e também por preguiça: aceitar os preconceitos mais facilmente compartilhados dá menos trabalho do que pensar por conta própria.

Um exemplo de como a coisa mudou. A Reforma Protestante começou quando alguém perguntou a um padre: "Mas por que acreditaria em você?" O padre respondeu: "Porque sou padre". Mas, de repente, o argumento não valeu mais: "E daí que você é padre? O que você vai fazer para ganhar meu respeito?".

Na mesma linha, alguém escutaria que a Terra está ao centro do universo ou que Deus a criou em sete dias e perguntaria "Quem disse isso?". O padre responderia que foi Deus. E o indivíduo responderia o que ele se permitiu aprender, ou seja, que não foi Deus, mas um escritor de 2.600 anos atrás, o qual queria consolar o povo judaico depois do cativeiro na Babilônia.

Fomos longe por esse caminho. A mesma pergunta colocada ao padre pode ser hoje colocada aos pais: "Obedecer a vocês por quê?". "Porque somos seus pais." "E daí? Ganhem primeiro minha confiança."

O poder se tornou um lugar mais incômodo. E a sociedade, em geral, tornou-se um lugar mais livre e interessante —claro, à condição, como disse, de se instruir, pensar e dialogar.

A partir do século 18, também aconteceu que a própria razão funcionasse como uma desculpa do poder. "Você quer mandar por quê?". "Porque meu plano é racional", responderia Stalin em 1928, acrescentando que, por um plano "racional", valeria a pena sacrificar milhões de dissidentes.

Os fascismos e o comunismo demonstraram que a razão em si (separada da concretude da vida) pode ser tão abusiva quanto os preconceitos e a deferência diante da tradição e da autoridade.

A vontade moderna de se instruir, pensar e dialogar é ameaçada por dois grupos opostos e ambos toscos: 1) os que não querem aprender, estudar e dialogar e recorrem aos preconceitos da "tradição" para poder assim deixar de pensar (que é uma tarefa cansativa); 2) os que tampouco querem aprender, estudar e dialogar, e recorrem à "razão" abstrata como a uma camisa de força que pode ser imposta à realidade, sem se dar a pena de sequer, primeiro, conhecê-la.

Nas últimas colunas, propus minha definição do boçal: o boçal é quem quer decidir o que os outros deveriam pensar, sentir e fazer da vida. O tosco (nisso diferente do boçal) é quem tem opiniões sobre quase tudo sem fazer o esforço para conhecer a realidade sobre a qual opina: ele não precisa se inteirar de nada, porque opera a partir de preconceitos.

Nota: está na moda perdoar os toscos porque, sei lá, não tiveram boas escolas, faltaram livros em casa quando eram crianças etc. Entendo, mas ser tosco é também uma decisão de vida, comandada por uma tremenda preguiça de ler, aprender e se instruir.

Nos últimos tempos, houve, aliás, intelectuais que se especializaram na tarefa de desculpar os toscos, ou seja, de permitir que eles pudessem continuar opinando sem instrução e sem culpa. Voltarei sobre isso outra vez.

Continuo: muitos boçais são também toscos e muitos toscos são também boçais. O tosco-boçal tem opiniões por puro preconceito (ou seja por ignorância), e são justamente essas opiniões que ele quer impor aos outros.

Enfim, uma receita para não ser tosco. Imaginemos que seja inevitável você se posicionar sobre um tema (sei lá, se o gênero corresponde ao sexo aparente?). Para não ser tosco, você vai precisar ler no mínimo quatro livros recentes sobre o tema. Ao menos dois desses livros precisam ser boas histórias gerais do assunto (como surgiu, como foi tratado até hoje etc.).

Com isso, será que sua opinião será fundamentada? De fato, com isso, você vai desistir de manifestar sua opinião, porque vai ter descoberto que só tosco opina. Para os outros, a vida é complexa demais para ser matéria de opinião.

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