Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris
Descrição de chapéu

Qual ideologia de gênero?

Opiniões ou crenças são diferentes do conhecimento que vamos acumulando

Se digo que o vírus HIV (causador da Aids) pode ser transmitido por transfusão de sangue ou numa relação sexual, especialmente anal, isso é hoje conhecimento. Posso acrescentar que, portanto, a transmissão é mais frequente em pessoas promíscuas e em hemofílicos, que precisam de transfusões assíduas: isso também é conhecimento.

Mas, se digo que o HIV é um flagelo divino para punir os promíscuos e particularmente os homossexuais, que transam muito (e nem é para se reproduzir), isso não é conhecimento, é ideologia. Isso, só para verificar que falamos a mesma língua.

Nessa linha, a “ideologia de gênero” seriam as opiniões ou crenças em matéria de gênero —diferentes do conhecimento que vamos acumulando, aos poucos, sobre o tema. Exemplos.

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

A partir dos anos 1970, alguns militantes, querendo proteger a vida e os direitos de indivíduos que tentavam mudar de gênero, afirmaram que os gêneros seriam construções puramente sociais: não existiriam, aliás, apenas o gênero masculino e o feminino, mas um leque de nuances de gênero, onde cada indivíduo encontraria livremente seu lugar.

Essa afirmação é parcialmente ideológica, pois não é exato dizer que cada um escolhe seu gênero “livremente”, como a gente escolhe a roupa do dia. E é parcialmente correta (não ideológica) porque, de fato, como vou mostrar mais adiante, não existem só dois gêneros.

Agora, a ideia de que o gênero poderia ser “livremente” escolhido pareceu perigosíssima (não sei bem por que) aos defensores da família tradicional e da ordem. E eles acusaram os ativistas já mencionados de praticarem uma “ideologia de gênero”. De fato, a crença dos tais defensores da tradição, de que haveria só dois gêneros, é também uma ideologia. Ela é, aliás, a grande ideologia de gênero contemporânea, aquela que impera nos botequins e nas igrejas.

Moral da história: em matéria de gênero, temos duas ideologias opostas. Uma diz que os gêneros são construções culturais que nos são impostas e que deveríamos poder escolher livremente. E a outra diz que só há dois gêneros, e o resto seria papo furado e sem-vergonhice.

O que realmente sabemos sobre gêneros, ideologias à parte? Sabemos que o sexo aparente de um indivíduo pode não corresponder ao gênero ao qual o indivíduo se sente pertencer —nesses casos, o indivíduo pode se tornar transgênero, ou seja, mudar sua aparência e seu sexo, para caber no gênero ao qual ele se sente pertencer. Quando isso acontece, há uma mistura complexa (e ainda bastante pouco definida) de fatores em jogo: genéticos, hormonais e psíquicos.

Mas o que me importa hoje é que também sabemos que o sexo aparente de um indivíduo pode não concordar com seus órgãos sexuais internos ou com o sexo indicado por seus cromossomos. 

Por exemplo, alguém pode ter cromossomos XY (masculinos), nascer com vulva e vagina e, no lugar onde se esperaria que estivessem seus ovários, apresentar testículos. O feto desse indivíduo apenas respondeu de maneira atípica aos andrógenos masculinizantes (talvez uma deficiência de 5-alfarredutase).

A lista das condições genéticas e hormonais que produzem indivíduos intersexos (nem homens nem mulheres) é longa. Uma estimativa plausível diz que 1,7% dos nascimentos são de indivíduos mais ou menos intersexos.

A medicina foi truculenta e abusiva com esses indivíduos. Classicamente, até dez anos atrás, num caso como o que citei antes, os médicos decidiriam tirar os testículos e “fabricar” uma menina.

Hoje prefere-se deixar cada um crescer e viver como ele ou ela decidir. Nos últimos anos, as operações e mutilações de crianças intersexos são mais raras, até porque, em alguns países, o indivíduo mutilado na infância pode, uma vez adulto, recorrer à Justiça e pedir indenização a médicos e pais. Também se começa a pensar na possibilidade de os intersexos declararem oficialmente seu gênero como neutro.

Enquanto isso, a ideologia de gênero insiste em declarar que Deus só cria homens e mulheres. Os botequins e os pastores que pretendem isso estão comprometendo a reputação de Deus, pois, obviamente, sua fábrica de humanos, se Ele estivesse fabricando só homens e mulheres, teria um seríssimo problema de controle de qualidade.

Uma questão, que fica para outra vez: por que a existência de intersexos e transgêneros é negada pela ideologia de gênero de botequins e pastores?

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