Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

A sexualidade de Jesus

Se Cristo fosse homossexual, o cristianismo de hoje seria alegre e hedonista

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Leo Steinberg foi um grande crítico e historiador de arte americano. Em 1983, ele publicou um livro que fez barulho, “The Sexuality of Christ in Renaissance Art and in Modern Oblivion” (Random House) —a sexualidade de Cristo na arte da Renascença e no esquecimento moderno.

Steinberg mostrava que havia, na arte renascentista, uma certa ostentação (se não uma hipertrofia) dos genitais tanto de Jesus bebê quanto de Jesus adulto, no seu suplício.

Ele explicava que esse acento sobre os genitais de Cristo tinha uma motivação teológica no quadro do debate que discutia, na época, a encarnação.

Mostrar o sexo de Jesus era, segundo Steinberg, um jeito de afirmar que ele fora, do nascimento até o fim, tão homem quanto qualquer homem, se não mais.

Ilustração de uma ampulheta. Na parte superior dela, há uma pedra e, na parte inferior, há um punhado de areia que já caiu. Em volta do objeto, há várias plantas com folhas grandes e verdes.
Luciano Salles/Folhapress

Pensei, aliás, no livro de Steinberg alguns anos atrás, quando, no pavilhão italiano da Bienal de Arte de Veneza, esbarrei nos genitais imponentes de um crucifixo. 

É provável que, no debate renascentista, o sexo avantajado de Cristo também servisse para dizer que, se ele não se permitiu paixões carnais, isso foi fruto de grande esforço, pois seu desejo e seu órgão eram descomunais.

Nota, para evitar mal-entendidos: nada de tudo isso nos informa quanto a Jesus e sua sexualidade. O que falamos sobre uma divindade, em geral, só nos informa sobre nós mesmos. E o livro de Steinberg nos diz que a Renascença gostava do ideal de um Cristo que saberia reprimir desejos fortes.

Durante anos, estudioso de filosofia medieval, fui um leitor da “Patrologia” publicada por J.P. Migne no século 19. São mais de 400 volumes reproduzindo os escritos latinos e gregos dos padres da Igreja, a partir de Tertuliano (160-220 d.C.).

Em geral, quem estuda os padres da Igreja, desde Paulo de Tarso (que viveu logo depois da morte de Cristo) até o ano 1.000, constata que os cristãos se apropriaram do ideal greco-romano de autocontrole (de domínio de cada um sobre suas paixões), mas o reduziram a um ideal de controle do desejo sexual. 

Esse empobrecimento foi a obra de um grupo de neuróticos graves (do próprio Paulo de Tarso a Tertuliano, Agostinho, Clemente de Alexandria, sem contar Orígenes, que se castrou mesmo): todos desgostosos de seu corpo e de seu desejo sexual, eles conseguiram transformar seus sintomas e sua necessidade de se reprimir num grande ideal coletivo.

Um corolário disso foi o surgimento, em nossa cultura, de um extraordinário ódio pelas mulheres, sempre tentadoras e “portanto” responsáveis pelos desmandos do desejo masculino.

Eu, aliás, não deveria me queixar da vitória cultural dos padres neuróticos, pois eles prepararam o terreno da psicanálise freudiana: graças a eles, o sexo se tornou o âmago escondido de cada indivíduo.
Voltemos a Cristo. Ele só se reprimiu, como mandaram seus seguidores mais ilustres? Ou amou carnalmente? E a quem? Maria Madalena ou João o apóstolo? Não há hipótese plausível sobre a sexualidade de Jesus.

Só levanto a questão por causa do especial de Natal do canal Porta dos Fundos, “A Primeira Tentação de Cristo”, na Netflix —e, claro, por causa das reações indignadas que o episódio do Porta provocou. 
Sobre o filmado, me alinho com o texto de Reinaldo José Lopes, na Folha desta terça. Assisti e não consegui rir. Mas sejamos indulgentes, porque é Natal e porque a comédia é a arte mais difícil de todas.

Resta que quero responder a uma pergunta: por que tanta indignação com Jesus gay, se, no especial de 
Natal do ano passado, o Porta dos Fundos trazia um Jesus beberrão e mau caráter, e ninguém (ou quase) se indignou? É homofobia?

Sim e não. Para os cristãos que acreditam nos padres neuróticos dos primeiros séculos, a homossexualidade é o protótipo de um prazer sexual sem desculpas, uma vergonha absoluta: “eles” transam sem a menor chance de se reproduzir, ou seja, sem justificativa alguma. Nada de gay, então!

Agora, por isso mesmo, eu realmente gostaria que Jesus fosse homossexual, ou seja, que fosse um exemplo da liberdade de quem se permite gozar pelo prazer, sem desculpas. Talvez um Jesus gay bastasse para desmentir os carrancudos que, em nome dele, promoveram a repressão sexual como ideal. 

Se Cristo fosse homossexual, o tal grupinho de padres neuróticos talvez perdesse a batalha dos primeiros séculos. Com isso, o cristianismo de hoje seria alegre e hedonista, como muitos cristãos tentaram ser no primeiro milênio. Eles foram massacrados. Bom Natal.

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