Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

A permanência romântica

Costumamos entender o romantismo como uma escola literária com começo, meio e fim, que se define pela preponderância da emoção sobre a razão, a quebra das convenções da sociedade hipócrita, os direitos do amor sobre a conveniência e o supremo valor dos sentimentos num mundo frio e calculista. Aprende-se também na cartilha que, na passagem do século 19 para o século 20, as coisas mudaram substancialmente: a razão, agora em forma de ciência, voltou ao centro do palco, o indivíduo virou uma multidão sem rosto, e a emoção e os sentimentos reduziram-se a uma química demonstrável e condicionada.

Três leituras recentes me levaram a repensar a extensão e a profundidade dos ideais românticos, e do quanto eles estão vivos. O primeiro, de Rüdiger Safranski, "Romantismo - Uma Questão Alemã" (Estação Liberdade), é uma ótima historiografia das raízes alemãs do movimento romântico, a sua identificação com a ideia de "pátria" lado a lado com o direito incondicional à liberdade do indivíduo e o subsequente culto do "super-homem".

Safranski marca o início do movimento em 1769, com a viagem à França de Johann Gottfried Herder, o "Rousseau alemão", e especula, ao longo dos dois séculos que se seguem, em que medida o nacional-socialismo e o movimento de 1968, cujas consequências vivemos hoje, por mais antípodas ideológicos que sejam, foram caudatários do mesmo devastador espírito romântico: a ideia de que o mundo e o homem podem ser radicalmente transformados.

Os outros dois livros, do pensador Isaiah Berlin (1909-1997), aprofundam a dimensão filosófica do conceito: "As Raízes do Romantismo" (Três Estrelas) e "Ideias Políticas na Era Romântica" (Companhia das Letras). Em "As Raízes...", Berlin afirma que o romantismo é "a maior mudança já ocorrida na consciência do Ocidente". Ao mesmo tempo, num fascinante retrato do que estava filosoficamente em jogo no trepidante final do século 18, ele acentua o quanto é difícil definir o romantismo como um movimento homogêneo, tantas são as diferenças que encontramos nas suas maiores expressões.

Arriscando um resumo grosseiro do roteiro de Berlin, há um conceito unificador: se até então, por díspares que fossem os filósofos, pressupunha-se mundo como um dado objetivo que pode ser perfeitamente compreendido e explicado (por uma teologia, pela observação empírica, pela indução teórica etc.), o espírito romântico rompe para sempre essa certeza tranquilizadora.

Assim: "Não, o mundo não tem explicação. Quem faz o mundo sou eu". O Iluminismo, que parecia se estabelecer em definitivo como a catedral máxima do espírito da razão sobre todas as coisas, começa ser minado irreversivelmente pela guerrilha romântica.

Em "Ideias Políticas...", Berlin analisa as consequências políticas do ideário romântico a partir dos conceitos de liberdade e Estado. A figura-chave, talvez o pensador mais influente do nosso tempo, é Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Quando preferimos comprar uma verdura orgânica a um produto criado com fertilizantes, é a sombra de Rousseau que move nossa escolha, ainda que o gesto, se se tornasse universal, levasse a um rápido colapso da humanidade.

"O que é natural é bom" –esse dogma que paira como um Deus sobre a consciência popular contemporânea é um mantra rousseauniano. Numa bela análise do pensamento de Rousseau, Berlin demonstra a sua luta para conciliar dois conceitos incompatíveis: o da liberdade absoluta do indivíduo e o equilíbrio do "contrato social", que, não contaminado pela corrupção civilizada, naturalmente nos levaria às escolhas perfeitas e ao paraíso na Terra. O homem livre escolhe sempre o melhor, que é o natural –um "natural" que, digamos, demonstra-se a si mesmo. Se ele não escolhe o que é naturalmente bom, é porque ele não é livre, ainda escravo da falsidade.

Não é difícil perceber como esse silogismo é uma algema –e como os movimentos totalitários mantêm seu DNA romântico. Atrás dele, está o anti-intelectualismo, a desconfiança da inteligência e a ideia de que existe uma "alma popular" autônoma e autêntica que fala e clama por nós. Encontra-se tanto no demagogo da esquina quanto no sofisticado conceito de Volksgeist ("o espírito do povo"), do filósofo Martin Heidegger (1889-1976) –que, não por acaso, vestiu a suástica por um bom tempo.

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