Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Cristovão Tezza

O feiticeiro do iPad

A onipresença da comunicação digital deve nos afetar em todas as esferas

Vânia Medeiros/Folhapress

Quando o Antônio, meu netinho de quatro anos e meio, vem aqui em casa, segue direto ao quarto do Felipe (meu filho), pedir o iPad emprestado, e prega os olhos nos jogos dos Angry Birds. Como seus pais mantêm saudavelmente a rédea digital curta, ele faz a festa com o avô e o tio, que são frouxos. 

Conforme sabemos, os pais educam, os tios estragam e os avós corrompem. Tirá-lo da telinha desafia minha retórica racional, inteiramente inútil. Resolvi recorrer à lógica da fantasia: “O Feiticeiro pegou você?”

E ele, sem erguer os olhos: “Que Feiticeiro?” “Ora, o Feiticeiro do iPad. Ele prende os olhos das pessoas, e elas não conseguem mais se livrar do aparelho. Ele está pegando todo mundo.” A primeira reação, sempre sem levantar os olhos, foi cética, com a impressionante independência das crianças modernas: “Não existe Feiticeiro nenhum!” “Claro que existe. Veja só: faz 30 minutos que você está aqui completamente hipnotizado pelo Feiticeiro. Você não consegue tirar os olhos. Não consegue se livrar dele. Ele é muito poderoso.”

Por alguns segundos, meu neto segurou na telinha o estilingue de estraçalhar porquinhos verdes, naquele cenário feérico de pássaros loucos, como se ponderasse o valor do que eu dizia, mas a dúvida durou pouco. Soltou o dedo e seguiu-se uma explosão de pedras e gritos e uma correria de bichos histéricos. Provoquei:

“Viu? O Feiticeiro é invencível. Você não vai se livrar nunca de seus poderes.”

Desafiado na própria arena dos desenhos animados, ele reagiu: “Pois eu consigo!” Com as mãos firmes segurando a tabuleta digital (talvez temendo que eu desse um golpe de Estado arrancando-lhe o aparelho), girou a cabeça para o lado, pescoço duro, olhos sérios na parede, a firme determinação de um

Capitão América: “Veja! Eu consigo tirar os olhos! Eu sou mais forte que ele!”

Apelei para a minha chave retórica final: “É o que você pensa. Ele está puxando você de volta agorinha mesmo, e em poucos segundos você estará preso de novo pelos olhos. Ele é muito mais forte.”

Indeciso entre a razão e o desejo, Antônio voltou enfim ao iPad, sob a hipnose das explosões de passarinhos alucinados. E o desejo encontrou o álibi da razão: “Vou continuar jogando porque eu quero, não por causa do Feiticeiro”.

Como eu sou um homem típico do século 19 —quando criança, via a carroça trazer a lenha para o fogão de casa—, o avanço da tecnologia banhava-se numa onda otimista: o mundo só iria para a frente. 

Naturalmente imaginamos que os equipamentos modernos são apenas aparelhos neutros que melhoram a vida, ganham tempo, encurtam caminhos, sem nos transformar.

Ainda não sei em que medida eu fui transformado pelos objetos; gosto de imaginar que, essencialmente, não mudei muito da minha infância até aqui. Sim, as ideias e os ideários e os projetos mudam ao longo do tempo, e é bom que seja assim; o que não muda, talvez, é o modo de reagir às mudanças, as formas da sensibilidade, o nosso jeito, o nosso “centro de valor” —a expressão que o pensador Mikhail Bakhtin (1900-1975) usa para definir a constituição do narrador na prosa literária. Como cada pessoa, escreva ou não, é o narrador de sua própria vida, o seu próprio personagem, a estabilidade deste centro de valor é importante.

Bem, hoje o “Feiticeiro” está em toda parte. Não sei em que medida a mudança física de comportamento, com as pessoas praticamente o tempo todo com os olhos fixos numa telinha, representa uma mudança de cultura, visão de mundo ou sistema de valores. Também não sei em que proporção somos afetados por ideias (a natureza das informações, pensadas em estado puro), com relação ao fascínio das suas formas de acesso. “O meio é a mensagem”, dizia Marshall McLuhan (1911-1980), o profeta otimista dos anos 1960, antecipando mais uma face da revolução da contracultura, que implodia o peso conservador dos “conteúdos”. 

Há uma rede intrincada entre uma coisa e outra, mas, pensando apenas intuitivamente, parece nítido que a onipresença da comunicação digital deve nos afetar em todas as esferas de comportamento, assim como a saída do campo para a cidade, o intenso processo de urbanização, já num primeiro momento “digitalizava” as relações humanas. Um vizinho no campo não tem o mesmo significado e presença de um vizinho no prédio, assim como hoje, parece, os processos de empatia humana terceirizaram-se todos.

Bem, no momento em que, de um lado, a figura soturna do general Mourão, porta-voz da dupla militar sai das cavernas do passado ameaçando-nos com o tacape da regressão incivil, e, de outro, a ridícula pantomima lulista, com a divina unção de Haddad, promove até o último ato o sequestro do pensamento de esquerda no país, o meio parece que, de fato, tornou-se a mensagem. Se não como fato, certamente como metáfora.

Hoje o Antônio vai passar o dia aqui, e meu filho Felipe (que é Down), apressou-se a esconder o seu iPad numa prateleira inacessível. Emaranhado no meu texto, a cabeça lenta (onde eu estava mesmo?), sinto o puxão insistente no meu braço: “Explica pro Antônio que o Feiticeiro existe! E é perigoso!”.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.