Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

Contos de terror

Temática nunca me atraiu especialmente, mas sintoniza bem com o espírito do país

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Atrás de um assunto para a minha primeira coluna de 2019, na ressaca de um ano tenso e tentando organizar papéis e gavetas em nome de um vago planejamento, revirei as pilhas de livros em torno e esbarrei no exótico "The Vampire", de Montague Summers (1880-1948), um excêntrico pastor inglês especialista em vampiros ("um pária mesmo entre os demônios") e outros seres malignos, temas aos quais dava um rigoroso tratamento científico, banhado numa abundante bibliografia, aliás poliglota, do grego ao latim e mais línguas derivadas, tudo de comprovação indiscutível.

Distraído, pensei nas primeiras notícias do ano e do novo governo, com suas novidades impactantes, a começar por um jovem chanceler e templário severo que, com um séquito de cruzados, vai devolver Deus ao Brasil, ou Brasil a Deus, porque a nação vive em Cristo, ou algo assim; ou o novo exército de um pequeno Torquemada entusiasmado que há de endireitar a educação do país, começando por um exorcismo radical de maus espíritos, com a simples substituição das ideias erradas pelas ideias certas.

Na vasta área dos direitos humanos, índios, mulheres e seres assemelhados, leio que só será contratado para trabalhar ali quem não se manifestou contra o assassinato de Marielle, num teste bíblico de Chibolete; e além disso sou também obrigado a ouvir metáforas sobre rosa e azul de um governo que já começa a dar sinais preocupantes de que tem sérios problemas sexuais e não sabe o que fazer com eles. É ridículo, mas sombrio.

Ilustração
Vânia Medeiros/Folhapress

E ao tentar entender o incompreensível, tudo parece pouco; um dos filhos recomenda, do alto do seu vazio, com a arrogância, a estupidez e a boçalidade que já são o autêntico logotipo da Presidência, que os professores do ensino médio do ano que se inicia não devem falar sobre feminismo, "linguagens outras que não a língua portuguesa ou história conforme a esquerda", e eu releio a patacoada analfabeta atrás de um sentido, me perguntando quem seria esse alguém para "recomendar" alguma coisa aos professores, e me ocorre a palavra "idiota", é claro!

O Brasil conta com os préstimos intelectuais daquele pensador que é, por autodeclaração, o maior especialista em idiotas do país, e que acaba de espetacularmente emplacar o poder (ou "lacrá-lo", para usar um termo da moda —"Eles me levaram a sério!", ele deve estar repetindo, ainda incrédulo, com orgulho legítimo).

E, como numa história da Bíblia, não se passaram ainda seis dias, mas não há descanso no sétimo —o mesmo filho divulga ao país e ao mundo sua imagem feliz com um revólver à mão dando tiros com volúpia, em defesa da liberação de armas no país que conta com mais de 60 mil homicídios por ano, um recorde mundial.

Volto aos arcanos de Montague Summers, tentando inutilmente escapar do noticiário: "É verdade que em certas nações parece haver uma indiferença à vida humana, um desprezo pela própria morte que com frequência assume as formas mais extravagantes e ultrajantes".

Decido pular da rigorosa ciência dos vampiros, excessiva para mim, aos prazeres da ficção, que dá maior nitidez à realidade, e, para sintonizar com o espírito da coisa e do país, abro os "Contos Clássicos de Terror" (Companhia das Letras; seleção e apresentação de Julio Jeha).

Pela inquietude da razão que me assombra e faz minha cabeça, nunca me atraiu especialmente a temática do terror (Isso não existe!, diz minha lógica miúda), mas o medo ainda não me transformou num covarde. Vou abrindo corajosamente as páginas, e de tudo que leio (só texto bom!), paro abismado em "A Causa Secreta", relembrando esta obra-prima sobre o mal, do sempre inacreditável Machado de Assis.

É um conto perfeito, que, décadas antes do cinema, começa com um recorte de um vaivém cinematográfico ("Garcia, em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de balanço, olhava para o teto; Maria Luísa, perto da janela, concluía um trabalho de agulha."), avança com uma elegância narrativa absurda, vivíssima um século depois e enxuta como um punhal, e termina com uma cena sobre os prazeres da tortura, que é a essência do terror.

Como a tortura é um dos assuntos de aguda predileção da Presidência, o conto de Machado ganha uma inesperada dimensão didática.

Um dos contos do livro, de Villiers de L'Isle-Adam, chama-se justamente "A Tortura pela Esperança", em que o protagonista o tempo todo se pergunta, enquanto se arrasta nas trevas em direção à luz: dá para sair dessa?

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