Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

Repúblicas brasileiras

Leituras para tempos em que o futuro presidente nos pastoreia com a 'verdade'

O bizarro padrão estético das mensagens do presidente eleito via redes sociais é uma mistura abrutalhada de exército islâmico e pastor de almas, gestos de campanha (nos sentidos eleitoral e militar do termo) e parolagem à Chávez e Maduro: a ameaça de aprovar ele mesmo as questões do Enem é tipicamente venezuelana, embora imagine-se trumpista.

A ideologização do seu discurso, pregando o controle dos conteúdos das escolas segundo os valores da "família conservadora", que é a "verdade", sugere que Bolsonaro não foi eleito presidente da República, mas o bedel moral do povo brasileiro. Para quem tem como herói, declaradamente, um torturador, é uma fratura intrigante, o que os fiéis descartam aos gritos (Vai pra Cuba! Foice! Petista! Comunista!).

A continuar assim, o futuro governo desenha-se institucionalmente como o mais ignorante da história do país  —e olha que a competição na área é feroz.

Ilustração
Vânia Medeiros/Folhapress

Mas a noção de República não é mesmo simples ou intuitiva; é uma penosa construção da cultura. A nossa "Belíndia", expressão que sintetiza a Bélgica e a Índia que coexistem no Brasil, marcado desde sempre pela desigualdade econômica, é também uma divisão cultural.

Há muitas variáveis em jogo, incluindo-se o advento avassalador da internet; se de um lado ela abriu com pendor democrático as comportas da hierarquia do saber, potencialmente universalizando o acesso à informação, de outro (como lembrava Umberto Eco) deu voz ativa e agressiva a milhões de imbecis. Ingênuos acreditam que o WhatsApp os liberou da "manipulação"; agora eles têm acesso direto aos "fatos", que se resume a uma guerrilha primitiva de tuítes. Ao mesmo tempo, e paradoxalmente, o frenesi contemporâneo da cultura identitária e relativista estilhaçou o pressuposto basilar da política moderna, de raiz iluminista, que é o princípio da igualdade universal sob a luz da razão. O problema é que há muitas razões em jogo.

O conceito de cidadão vem daí, mas nunca foi plenamente absorvido na cultura brasileira. Para acompanhar essa dura história, acabo de ler dois ótimos livros. "Ser Republicano no Brasil Colônia", de Heloisa M. Starling (Companhia das Letras), investiga o sentido que a palavra "república" ganhou entre nós desde o início. O seu primeiro significado, em uma terra destinada apenas a fornecer riqueza para Portugal, é operacional.

Em sua "Historia do Brazil" (1627), frei Vicente do Salvador já lamentava, como hoje se lamenta, que "nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". Ser republicano era zelar pela metrópole.

No século 18, o conceito de República vai ganhando o perfil dos modos de organização do Estado, num caldeirão explosivo que começa no desejo genérico de autonomia e liberdade e termina na ideia radicalmente revolucionária, segundo a qual "todos os homens nascem iguais".

Em seu sentido primeiro, a República se opõe à tirania; em outro, que triunfou no Brasil, opõe-se apenas à monarquia. A igualdade sonhada a partir da matriz francesa esbarrava aqui no estatuto da escravidão, que literalmente carregou o país nas costas e desde sempre foi a armadilha mortal do nosso atraso. O livro faz uma viagem conceitual fascinante e precisa sobre os impasses republicanos da história brasileira.

Em seguida, mergulhei em "O Tiradentes  uma Biografia de Joaquim José da Silva Xavier", de Lucas Figueiredo (Companhia das Letras). Numa narrativa límpida do início ao fim, atentamente documentada, o livro é uma viva demonstração de como a luta republicana se materializou de fato entre nós nos detalhes e nos meandros da Inconfidência Mineira, a segunda maior conjuração republicana das Américas depois da revolução americana.

Movimento rebelde que nasceu entranhado na maior mina de ouro do mundo, de onde Portugal extraía a imensa riqueza que dilapidava em seguida por força da inacreditável inépcia de uma monarquia enlouquecida, a Inconfidência foi uma aventura eletrizante. Envolveu pontas de todo o espectro da elite política e econômica da região, alimentou-se do ideário letrado do Iluminismo e da Revolução Americana, e terminou com o enforcamento e esquartejamento de um alferes injustiçado, entusiasmado, boquirroto e irrelevante —um pequeno Cristo à brasileira, o Tiradentes.

Duas belas leituras sobre o conceito de República, úteis para o momento em que o futuro presidente nos pastoreia com a "verdade".

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