Os livros de Roberto Bolaño são fontes inesgotáveis para investigações etílicas. Há neles centenas de menções a bares, bebedeiras, bebericagens e bebidas. Só em "Detetives Selvagens", "carta de amor que escreveu para sua geração", garrafas e copos de tequila são citados 23 vezes —o mescal aparece em 20 ocasiões.
Isso se explica porque parte do romance, na verdade um caleidoscópio literário, ou, se preferirem, uma polifonia de vozes (fosse um coquetel, teria 53 ingredientes), se passa no México, país onde o escritor chileno morou na adolescência e, num segundo momento, depois de escapar da prisão na ditadura de Pinochet.
Em meio aos muitos relatos que compõem o livro, contando a aventura inesperada de dois amigos poetas que saem pelo mundo em busca de sua mentora, a escritora Cesárea Tinajero, fundadora do "realismo visceral" (versão ficcional do infrarrealismo, movimento criado por Bolaño e Mario Santiago Papasquiaro, espécie de dadaísmo beatnik), há um que menciona o carajillo.
O drinque de nome peculiar teria surgido na Espanha, há mais de cem anos. Pode ser definido por alto como uma alternativa melhor para o energético com vodca, já que leva café e um licor ou destilado.
O relato é de uma estudante de literatura em Oxford, que viaja com amigos numa perua pela Europa, trabalhando em vindimas e na colheita de frutas. Num balneário na Catalunha, ela conhece o vigia de um camping —profissão que o saudoso Bolaño exerceu (na praiana Blanes). Ele a leva para Barcelona, onde, conta ela : "Levantávamos tarde, tomávamos o café da manhã em bares do bairro, eu uma xícara de chá, o vigia um café com leite ou um carajillo, depois íamos vagar pela cidade até o cansaço nos fazer voltar para casa" (tradução do grande Eduardo Bueno). Nada mal.
Houve um tempo em que o carajillo era de fato tomado de manhã, principalmente pelos trabalhadores espanhóis. Às vezes nem faziam a mistura, parente do irish coffee, do italiano caffè corretto ou do norueguês karsk; simplesmente tomavam o café e viravam uma dose de rum, conhaque ou aguardiente em seguida —ou o contrário. Energia, sin duda.
Na Catalunha, pediam "ara guillo", algo como "pra já". E essa é uma das possíveis origens do nome. Certa vez, Teresa Gimpera, a Fernanda Montenegro da região, foi chamada para fazer um teste em "Topázio", de Hitchcock, no papel de uma porto-riquenha. Ela foi para Hollywood e puseram-lhe uma peruca preta.
Quando a viu, o diretor de "Interlúdio" perguntou se estava nervosa. "Pedi um carajillo e ninguém me entendeu", disse ela. Não lhe deram o drinque nem o papel.
No México dos poetas de Bolaño, nascido há 70 anos, a 28 de abril, o carajillo é gelado, não quente, e em geral leva o licor 43, que surgiu… no sul da Espanha. Simples, potente e complexo, por conta dos 43 componentes do licor, virou febre entre os jovens mexicanos, de uns tempos para cá.
É beber e ganhar coraje (coragem), ou corajillo (diminutivo), como faziam os soldados que lutavam na guerra pela independência em Cuba, outra possível explicação para o nome. Ou simplesmente dizer, com satisfação: "carajo!"
CARAJILLO
50 ml de licor 43
40 ml de café expresso (quente e fresco)
10 ml de rum (opcional)
Coloque os ingredientes num copo baixo com gelo e mexa.
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