Depois de se apresentar por 15 dias no cubano Tropicana, Carmen Miranda voltou a Los Angeles. Com a saúde bastante debilitada, tinha de cumprir mais um compromisso —sob contrato, é certo, mas também por delicadeza.
Jimmy Durante ostentava o maior nariz do showbiz americano —e a maior popularidade. Como conta Ruy Castro em sua biografia da Pequena Notável, havia boa química entre o comediante e a cantora. Profissional ao extremo, ela cantou, dançou e brincou no programa do amigo.
Seria sua última noite.
Na sequência das filmagens ('The Jimmy Durante Show" era feito em película), Carmen recebeu uma montanha de gente em sua mansão, incluindo o Bando da Lua, que a acompanhava, e não se poupou dos habituais pedidos. Fez um espetáculo à parte, com acompanhamento rítmico do "tropel dos cavalos brancos entre as pedras de gelo" nos copos dos convivas. No seu próprio, o uísque White Horse também trotava.
Quando se retirou, o coração explodiu. Caiu dura, sozinha em seus aposentos, sob o efeito acumulado de uma avalanche de obrigações. Nas mãos, um espelho. Alheios ao que se passava, amigos, colegas e penetras continuaram os risos e a dança.
Uma das canções que interpretou no programa de Durante foi "Delicado", o baião disfarçado de choro composto por Waldir Azevedo, que tinha virado sucesso estrondoso com a orquestra de Percy Faith. Aloysio de Oliveira, escudeiro de Carmen no Bando da Lua, entrou com a letra.
Azevedo faria cem anos nesta sexta, 27. Sem a mesma fama e prestígio de Tom Jobim, também conquistou o mundo. "Delicado" recebeu versões em toda parte, do México ao Japão, assim como "Brasileirinho", primeira composição do Ás do Cavaquinho.
Foi tão espetacular a acolhida a essa completa tradução do chorinho que ele largou o cargo de funcionário público e passou a dedicar-se exclusivamente à música, rodando o planeta com seus solos no pequeno instrumento, do qual tirava sons impensáveis.
O chorinho surgiu na segunda metade do século 19, pelas mãos de escravos negros nas fazendas. Logo ganhou as cidades e virou o gênero por excelência das festas nas casas do Rio de Janeiro. Bastavam flauta, cavaquinho, piano e as notas graves do violão, que davam tempero melancólico à alegria (daí o nome). E, evidente, doses generosas da marvada.
Azevedo foi gigante, assim como Jacob do Bandolim. Ambos fizeram parte do repertório inovador e renovador dos Novos Baianos. Ironia involuntária, a obra-prima do grupo chamou-se "Acabou Chorare".
Chorinho também é aquela pingadinha a mais no copo, que o garçom oferece ao cliente conhecido do bar.
Os cem anos de Waldir merecem muitos chorinhos, tanto os plangentes quanto os etílicos. Por isso, vamos de um ingrediente bem brasileirinho, a jurubeba. É uma das dicas de Néli Pereira em seu livro "Da Botica ao Boteco", resultado de uma bela pesquisa sobre plantas e frutos do país usados em rituais, na medicina popular e na alquimia proto-raiz dos bares.
Destilados com graça e respeito por Pereira, os saberes de povos originários e da cultura negra descem a garganta e iluminam desvãos descuidados, como o fígado, esse bicho tão delicado.
O NIRVANA ENGARRAFADO (receita de Néli Pereira)
50 ml de gim
10 ml de vermute seco
5 ml de vinho de jurubeba Leão do Norte
10 ml de salmoura de jurubeba em conserva
Mexa os ingredientes em um mixing glass com gelo e coe para uma taça coupé previamente gelada. Decore com jurubeba em conserva.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.