Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Receita de Salvador Dalí contra o excesso de sobriedade

Casanova é coquetel contra a fadiga, as preocupações e o excesso de sobriedade

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Como Andy Warhol, Salvador Dalí era mais talentoso pelo barulho que fazia do que pela obra propriamente dita. Os bigodes empinados e os olhos arregalados eram marcas de um ego expansivo, insanamente criativo. Warhol era mais contido, discreto, ainda que onipresente, como os produtos industriais que transformou em arte.

Inquieto, em aparente tumulto, sem perder a pose e o humor, Dalí misturava as técnicas clássicas de pintura aos princípios do surrealismo, movimento do qual foi expulso por conta de seu apoio ao fascismo de Franco. Na verdade, ele era um misto de anarquista e monarquista, mais oportunista que fascista —o que não é desculpa.

Dândi bon vivant, além do pincel usava a caneta tinteiro. Escrevia de um jeito vívido e engraçado, com muita autoglorificação e tiradas espertas. Produziu alguns livros autobiográficos (reflexos de sua famosa tela, "A Persistência da Memória"), um sobre magia e pelo menos dois sobre culinária, além de um sobre vinhos. Este, aliás, era um assunto caro para o artista. "Um verdadeiro connaisseur não bebe vinhos e sim prova seus segredos", dizia.

Como em boa parte de seus trabalhos, o livro coloca sua musa no pedestal. Intitulado "Os Vinhos de Gala", traz outra pequena pérola: "Um grande vinho requer um louco para cultivar o vinhedo, um sábio para proteger a plantação, um poeta para produzi-lo e um amante para bebê-lo". Estava se descrevendo: louco, sábio, poeta, amante.

O grande García Lorca, seu amigo íntimo, iria mais longe ao afirmar: "Queria ser feito de vinho, para poder beber a mim mesmo". Freud, uma das fontes de inspiração do pintor catalão, ficaria embriagado com a frase.

Aos 120 anos, completados no último dia 11, Dalí segue derretido como seus relógios, transportado para um tempo maleável, que passa indiferente às leis físicas. Em termos relativos —e para o bem ou para o mal—, está vivíssimo, tendo sua influência estendida para as artes gráficas e cênicas, a pintura, o cinema, a moda, a arquitetura e a publicidade.

Não perdia uma oportunidade de se promover. Daí o anagrama Avida Dollars, que André Breton, líder do movimento surrealista (uma contradição em si), criou para ele.

Além das muitas entrevistas que dava, com seus gestos e falas estrambóticas, colaborou com Walt Disney e Hitchcock (o que é coerente) e ilustrou ou escreveu para várias revistas de destaque, como a Vogue. Fez também propagandas, algumas delas etílicas, como para a vodca Absolut, a cerveja Guinness e o uísque Old Angus.

Salvador Dalí em propagada para marca de uísque
Salvador Dalí em propaganda para marca de uísque - Reprodução

No livro "Les Diners de Gala", composto de receitas culinárias extravagantes, dedica espaço para um coquetel que leva sua assinatura, o casanova. Segundo ele, é um remédio contra "a fadiga, as preocupações e o excesso de sobriedade" —a inclusão desta última revela uma noção curiosa de mal-estar. "Além disso", continua, "essa mistura, que parece uma chicotada (sic), não se toma com a careta de asco que se faz frequentemente quando ingerimos um remédio".

Fato. E, para nossa sorte, o casanova não é um coquetel criado seguindo as fátuas indicações do inconsciente, no fluxo automático. De resto, é "esquecer para beber", como escreveu Jacques Rigaut, surrealista de talento precoce e vida breve.


CASANOVA

Suco de uma laranja

10 ml de Campari

5 ml de xarope de gengibre

60 ml de conhaque

Uma pitada de pimenta caiena

Misture a pimenta e o gengibre, depois acrescente o conhaque e o Campari. Deixe no freezer por meia hora. Adicione o suco e mexa.

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