Daniel Furlan

Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

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Daniel Furlan

Desenhando os problemas

Uma pessoa flutuando no ar seria absurdo

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“Se desenhar uma pessoa, tem que desenhar o chão. Quem não desenha chão é porque é maluco.” Memorizada essa preciosa dica, fui ao psicotécnico tirar carteira de motorista, e quando a funcionária do Detran pediu para que eu desenhasse uma pessoa, evidentemente desenhei uma figura simples em cima de um chão. Entretanto, entediado pela demora no retorno da funcionária, pus-me a enriquecer o desenho com detalhes: olheiras, cicatrizes com sangue escorrendo, moscas em torno da cabeça e fezes de animais pelo chão (mas havia um chão).

Quando ela voltou, minha figura simples tinha se transformado numa espécie de doente terminal em situação de rua. Tentei desesperadamente disfarçar o que tinha feito, mas era tarde demais. Ela examinou o desenho e fez uma expressão difícil de decifrar. “Repare que ele está com os pés num chão”, tentei pateticamente apontar. “Não é uma pessoa flutuando no ar, o que seria absurdo.”

Na mesma época, também obtive dicas importantes ao me apresentar no exército. “Tem que ter problema de saúde. Uma bola só no saco, paranoia, tendinite, tatuagem.” Tatuagem é problema de saúde? “Dependendo do desenho, pode ser considerado que a pessoa tem algum problema mental.”

Fazia sentido. Fui ao tatuador mais doidão da cidade e pedi um demônio bem grande na perna. Recém-convertido evangélico, ele explicou que não tatuava mais demônios, cadáveres ou crucifixos invertidos (logo as minhas três primeira opções). Na verdade, ele gostaria de não tatuar mais nada, mas não tinha outra qualificação, então compensava pelo menos pregando a Palavra enquanto trabalhava. Acabei pedindo um tribal, que com certeza me enquadraria em algum distúrbio mental. Após quatro horas de dor e pregação, eu era o feliz portador de um símbolo sem significado nenhum na perna.

No dia seguinte, parti confiante no fracasso da minha apresentação. Após alguns compatriotas terem seus nomes ridicularizados e/ou serem mandados de volta para casa por estarem de bermuda, levantei a barra da calça e confrontei a autoridade mais próxima com minha rebeldia eternizada na panturrilha. Ele perguntou se eu tinha mais de 80% do corpo tatuado. Minha miopia e tendinites também não foram suficientes e acabei dispensado só no último dia por excesso de contingente.
 

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