Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Guerra cultural é conflito assimétrico

A esquerda identitária elege a direita identitária

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Qual é a treta do dia? O cancelamento da semana? Quando as expedições de policiamento identitário típicas das redes sociais transbordam cotidianamente, como lava tóxica, às páginas da Folha, não duvide: as guerras culturais tornaram-se um traço dominante da política nacional.

Há décadas, o Ocidente oscila no ritmo das guerras culturais. A direita inventou o artefato; a esquerda pós-marxista resolveu imitá-la. Tais conflitos organizam-se não sobre "o que fazer?", a interrogação política clássica, mas sobre "quem somos?", uma pergunta muito mais divisiva.

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Adobe Stock

Na superfície, tudo parece simétrico. Direita e esquerda definem-se pela sintaxe identitária. Numa ponta, identidades nativistas (o "sangue francês", o "americano legítimo"), culturais (a "civilização judaico-cristã") ou religiosas (o cristianismo, os "valores da família"). Na ponta oposta, pela esquerda, identidades de grupo (raça, gênero, orientação sexual).

As simetrias estendem-se aos domínios da estratégia e da tática. Vitimismo: a "grande substituição", a "invasão do Islã", a "cristofobia" —ou o "racismo estrutural", o "genocídio negro", o "patriarcalismo". Autoritarismo: o adversário é um inimigo existencial, a ser calado ou encarcerado.

Abaixo da superfície, porém, despontam as assimetrias. São elas que explicam o resultado inevitável das guerras culturais: o triunfo da direita.

A direita opera identitarismos abertos, com ambições majoritárias. Todos os cidadãos dos EUA podem definir a si mesmos como "americanos legítimos", inclusive imigrantes e negros. A maioria dos europeus tem a opção de enxergar sua imagem no espelho do cristianismo. O chapéu enganoso dos "valores da família" pode ser usado por qualquer brasileiro.

A esquerda, pelo contrário, opera identitarismos fechados cuja vocação minoritária é exponencializada pela ferramenta polêmica do "lugar de fala". Os "negros", mas não todos: somente os que aceitam descrever-se como uma nação africana no exílio e estabelecer beligerância perene com os não negros. As mulheres, mas somente as que estão prontas a classificar os homens como uma população de potenciais estupradores.

Assimetria. Os ativistas da direita identitária procedem de partidos e igrejas; os da esquerda identitária, das universidades. A origem determina o plano de guerra: o objetivo principal dos primeiros é ocupar as instituições políticas representativas; o dos segundos, ocupar as instituições culturais. Uma bancada no Congresso ou o controle sobre reitorias? Senadores ou artigos de opinião no jornal da classe média? Deputados ou o palanque da Flip? Cadeiras no STF ou comissões da OAB?

Nos EUA, pátria das guerras culturais, só a pandemia evitou a reeleição de Trump, os republicanos controlam o Supremo, devem vencer as eleições legislativas e avançam sobre o voto hispânico. Na Europa, o pêndulo inclina-se à direita, emergem fortes partidos nacionalistas, a xenofobia e a islamofobia envenenam até os partidos social-democratas. A esquerda não tem chance no jogo do conflito assimétrico.

No Brasil, onde a guerra cultural semeou um movimento de ultradireita em solo virgem, o cenário não é tão diferente. Lula, que reserva o discurso identitário apenas para feriados, provavelmente vencerá. No Congresso, porém, a paisagem é outra.

Como triunfar na arena eleitoral acusando os brancos em geral de serem racistas, "mesmo se não têm consciência disso"? Qual é o resultado de um discurso fundado no pecado original da cor da pele, que distribui culpas e punições? Como persuadir uma maioria sentenciada de antemão por crimes odiosos que não cometeu?

O cortejo da direita, encabeçado pelos bispos de negócios, não poderia sonhar com adversários melhores que os sacerdotes da Igreja Racialista e suas falanges de Censores do Bem. A esquerda identitária elege a direita identitária.

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