Macron sentou-se no lado oposto da interminável mesa de Putin e entoou música para os ouvidos do russo. Um sistema de "segurança coletiva" negociado "entre europeus" —eis a senha pronunciada pelo francês. São ecos de Charles De Gaulle, um ruído horrendo para os ouvidos de Biden. No fundo, a França reativou o debate sobre os contornos da Europa.
Do ponto de vista de Washington, segurança coletiva não se negocia, pois já existe: a OTAN, que prende a Europa à liderança dos EUA e exclui a Rússia. O presidente francês contestou precisamente este dogma, enraizado na Guerra Fria.
De Gaulle falou, exatos 60 anos atrás, numa "Europa do Atlântico aos Urais", que incluiria a Rússia (na época, núcleo da URSS) e excluiria os EUA. A recuperação do tema gaullista revela uma fratura ainda mais ou menos oculta na Aliança Atlântica.
De Gaulle pretendia restabelecer a primazia francesa na Europa continental. Macron nutre o mesmo sonho. Mas a fratura tem extensão maior: a Alemanha resiste em romper a ponte (ou melhor, o gasoduto) que a conecta à Rússia e, numa escala global, teme as implicações econômicas da Guerra Fria 2.0 entre EUA e China.
A partição do sistema internacional entre Ocidente e Oriente converte a União Europeia (isto é: a Europa sem o Reino Unido) numa península geopolítica dos EUA.
Putin ouve o que quer. Na sua tradução, "segurança coletiva" estabelecida "entre europeus" significa esferas de influência. A Rússia definiu como objetivo consolidar sua hegemonia sobre um Exterior Próximo formado pelo Cazaquistão, pelas repúblicas do Cáucaso (Geórgia, Armênia e Azerbaijão) e, sobretudo, pelas "Rússias da Europa" (Ucrânia, Belarus e Moldávia).
No mapa mental de Putin, nenhuma dessas repúblicas ex-soviéticas têm direito à plena soberania —e, como ele explicitou, a Ucrânia só pode ser independente em "parceria com a Rússia".
A ferramenta para a definição das esferas de influência na Europa seria a implementação do Protocolo de Minsk, base do cessar-fogo de 2014 na Ucrânia, interpretado segundo os interesses de Moscou. Nessa linha, as administrações pró-russas dos enclaves separatistas no Donbass ucraniano ganhariam reconhecimento do governo central, junto com poder de veto sobre a política externa do país.
A "federalização" da Ucrânia representaria, de fato, uma neutralização forçada: a proibição permanente de adesão à OTAN ou à União Europeia.
O presidente russo entendeu as possibilidades abertas por Macron e elogiou seus esforços. Mas registrou, sombriamente, que os EUA, não a França, lidera a OTAN. Sem Biden, a peregrinação moscovita do presidente francês reduz-se a um gesto de campanha eleitoral.
A OTAN proclamou uma política de "portas abertas" em 1999, quando iniciou sua irresistível expansão para as nações do antigo bloco soviético. A incorporação da Ucrânia está além do horizonte previsível, devido à guerra congelada no leste do país, mas aceitar a neutralização forçada do país significaria renunciar às "portas abertas".
A reversão da política, sob chantagem armada da Rússia, enviaria aos integrantes da OTAN no antigo bloco soviético a mensagem de que a segurança coletiva oferecida pelos EUA não é um compromisso irretratável. Ou, dito de outro modo, de que tudo que é sólido sempre pode desmanchar no ar.
A "maior catástrofe geopolítica do século 20" —é assim que Putin descreveu a implosão da URSS. Hoje, diante da desastrosa retirada americana do Afeganistão, o líder russo opera como um diretor de cinema engajado na criação de um final alternativo para um filme antigo.
Na sua versão, a "Grande Rússia" renasceria das cinzas, restaurando parcialmente a esfera de influência delineada pelos czares muito antes de 1917. A visita de Macron, sinal das fissuras entre os EUA e os aliados europeus, indica que não é impossível rebobinar a história.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.