Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Rússia

Tigre de papel

Putin tem razão ao alegar que as promessas da Otan não foram honradas

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O mapa da expansão da Otan pipocou em todos os lugares, geralmente por iniciativa dos papagaios de Putin, engajados na justificação da agressão à Ucrânia. No papel, impressiona: desde 1999, a aliança ocidental recebeu a adesão de 14 países, entre ex-integrantes do bloco soviético e as três antigas repúblicas soviéticas do Báltico.

De fato, porém, a Otan ampliada é, como diria Mao Tsé-tung, um tigre de papel.

Putin tem razão ao alegar que as promessas feitas à URSS em 1990 não foram honradas. Na hora da reunificação alemã, líderes americanos, britânicos e alemães asseguraram a Gorbachev que, com exceção da Alemanha Oriental que desaparecia, a Otan não avançaria nenhum milímetro rumo a leste.

An abandoned car in a field outside the city of Brovary 25 km from the city of Kiev. The traffic of military vehicles has caused many accidents with civilian cars in the region.
Carro abandonado em Brovary, a 25 km de Kiev - André Liohn - 9.mar.22

Eram firmes garantias verbais, embora nunca vertidas em tratados. Mas, depois das guerras na Iugoslávia, os EUA mudaram de ideia, em parte devido à pressão dos países do antigo bloco soviético que almejavam a auréola de segurança oferecida pela aliança militar.

À frente de uma Rússia cambaleante, Boris Yeltsin cedeu. Por meio do tratado de cooperação Otan-Rússia, de 1997, a aliança encetou sua expansão. Foi um erro histórico do Ocidente, mas apenas a conclusão do equívoco maior, anterior, de abandonar o governo russo reformista à própria sorte, rejeitando a ideia de um resgate econômico nos moldes do Plano Marshall.

Putin nasceu no berço moldado pelo duplo engano. Mas o mapa ilude. Mao qualificou a bomba atômica americana como tigre de papel e, em 1956, usou a mesma alcunha para ironizar o imperialismo americano. A Otan ampliada merece mais o epíteto.

A Alemanha é, junto com a URSS, o motivo que levou à criação da Otan, em 1949. Contudo, nos 40 anos que transcorreram desde a reunificação, as forças armadas alemãs sofreram uma miniaturização. Dos 310 mil soldados, sobram 180 mil. Dos 4,7 mil tanques, restam 300. Dos 390 aviões de guerra, 230, e dos 130 navios, 60. Submarinos? Eram 18; agora são seis.

O orçamento de defesa alemão desabou de US$ 60 bilhões em 1990 para US$ 34 bi em 2005 e só voltou a crescer nominalmente após a anexação russa da Crimeia, em 2014, alcançando US$ 52 bi em 2020. Mesmo assim, no período inteiro, retrocedeu de 2,6% do PIB para 1,3%. A tendência repete-se nos demais países europeus da Otan.

Na França, os dispêndios militares passaram de 2,8% do PIB em 1990 para menos de 1,9% em 2019. No Reino Unido, de 3,6% para 1,7%. O componente europeu da Otan é, hoje, mais vasto territorialmente mas mais fraco militarmente.

O tratado Otan-Rússia proibiu o deslocamento de forças militares significativas para os novos integrantes da aliança. Isso foi honrado. A segurança dos 14 países incorporados repousa não sobre tropas ou equipamentos bélicos, mas na linha imaginária traçada pelo artigo 5º da carta da aliança ocidental, que garante a "defesa mútua" (leia-se: a defesa providenciada pelos EUA) em caso de agressão externa. A expansão representou, sobretudo, um gesto político.

Putin utilizou o tema da Otan como pretexto para a agressão –e seu álibi passou a ser repetido por incontáveis analistas simpáticos. Espertos, eles não dizem que a hipótese de ingresso da Ucrânia na Otan foi congelada desde o ataque russo de 2014, concluído pela anexação da Crimeia e pelo estabelecimento dos enclaves separatistas do Donbass. Nem que nada mudou daquele momento até a invasão russa em curso.

Entretanto, quando incendeia um país independente inteiro, o chefe do Kremlin insufla vida numa Otan que, nas palavras de Macron, vegetava em "morte cerebral". A Alemanha reverteu em três dias uma política externa de 30 anos. Os países europeus anunciam escaladas de gastos militares para bem além dos 2% do PIB, a meta almejada pela Otan mas não atingida desde o fim da Guerra Fria. O tigre de papel experimenta uma metamorfose, recuperando carne, osso e músculos.

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