Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Tomografia do discurso putínico

Papagaios de Putin que procuram com lupa neonazistas ucranianos praticam o duplipensar

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​​Os papagaios brasileiros de Putin, alvoroçados antes da invasão, calaram-se depois que as forças russas, incapazes de alcançar seus objetivos militares, engajaram-se no vandalismo, bombardeando edifícios residenciais, hospitais e abrigos de civis. Contudo, a algazarra retornará no minuto seguinte à eventual cessação de hostilidades. Vai aí, então, uma descrição das vertentes principais do discurso putínico de justificação da guerra de agressão.​

1. "A Rússia nasceu em Kiev –e, portanto, a Ucrânia não é uma nação legítima mas um fragmento da Mãe Rússia". O argumento do "Putin historiador", extraído dos anais clássicos do chauvinismo grão-russo, caberia na voz de um czar. Por aqui, circula livremente entre professores universitários.

De fato, Ucrânia e Rússia nasceram juntas. No plano puramente lógico, seria possível virar o argumento putínico ao avesso para postular que a Rússia não passa de uma extensão da "Mãe Ucrânia". Curioso –e um tanto melancólico– é constatar que os acadêmicos dispostos a ecoar a falácia histórica putínica rejeitam, corretamente, a justificação bíblica para o controle de Israel sobre o conjunto da Terra Santa.

Putin em celebração do aniversário da anexação da Crimeia no estádio Lujniki, em Moscou - Mikhail Klimentyev/Kremlin via Reuters

2. "A operação militar especial russa destina-se à desnazificação da Ucrânia". A lenda de uma Ucrânia submetida à hegemonia nazista, verdade oficial russa, ganhou tração nas redes sociais e, sob formas disfarçadas, na imprensa brasileira. O argumento sustenta-se, apenas, nas muletas da ignorância.

A Ucrânia tem um sistema político plural, competitivo, com eleições livres. O partido da direita ultranacionalista Svoboda obteve 2% dos votos e uma solitária cadeira parlamentar nas eleições ucranianas. Há quase 20 anos, o Svoboda expulsou os grupelhos neonazistas que o frequentavam. Uma facção minoritária neonazista participa da milícia Batalhão Azov, que apoiou a campanha eleitoral do Svoboda.

Os papagaios de Putin que procuram com lupa neonazistas ucranianos praticam o duplipensar. Eles jamais se recordam de que diversos partidos da extrema-direita europeia bebem na fonte (às vezes, nas finanças) do chefe do Kremlin.

3. "A Rússia defende a sua segurança nacional, evitando a adesão da Ucrânia à Otan". O argumento da moda, disseminado tanto pela esquerda petista quanto pela direita bolsonarista, tem a finalidade de desviar a responsabilidade pela guerra ao "imperialismo americano" ou ao "globalismo liberal".

A expansão da Otan merece exame crítico, que precisaria abranger o abandono ocidental do governo reformista russo de Yeltsin, no início da década de 1990. Mas não se pode atribuir a ela a agressão russa, pois a pretensão ucraniana de integrar a Otan foi congelada desde 2014.

Mais: a Otan comprometeu-se com a Rússia, em 1997, a não deslocar forças significativas ou armas nucleares ao território de seus novos integrantes. A obrigação foi honrada. Inexistia o risco, alegado por Lula, de estabelecimento de bases militares americanas na Ucrânia.

A barbárie desencadeada na Ucrânia desmoralizou os discursos putínicos explícitos, gerando duas novas variantes, menos letais mas muito mais infecciosas. A primeira inspira-se no pacifismo; a segunda, no identitarismo.

De acordo com a variante "pacifista", "não há mocinhos nem bandidos", uma profunda conclusão filosófica compartilhada por Guilherme Boulos e Marcos Feliciano. É o truque típico, grosseiro, para borrar a fronteira entre agressor e vítima.

Já a variante "identitária" enxerga, na indignação diante das colunas de refugiados, uma suposta "hipocrisia ocidental". "Tudo isso", acusam, "apenas porque são europeus e brancos". Os sacerdotes identitários, figuras abundantes nas páginas da Folha, apostam suas fichas no colapso da memória histórica: a Guerra do Vietnã começou a acabar quando emergiram as imagens dos bombardeios de napalm sobre aldeias vietnamitas.

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