Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Guerra da Ucrânia Rússia

Biden na jaula estratégica de Trump

Presidente dos EUA mostra-se capaz de passar no teste militar, mas fracassa no estratégico

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Na cúpula da Otan que definiu o novo conceito estratégico da aliança, sentaram-se à mesa quatro estranhos convidados. A presença dos chefes de governo de Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia sinaliza a identificação explícita da China como "desafio estratégico". Os EUA, responsáveis pelos convites, esqueceram a lição de Henry Kissinger. No lugar dela, Biden prende a Aliança Atlântica na jaula fabricada por Trump.

Kissinger sabe que é preciso impedir uma "aliança permanente" entre Rússia e China. Por isso, há pouco, clamou por negociações urgentes com Moscou para encerrar a guerra na Ucrânia. A Rússia, disse, tem papel insubstituível a desempenhar na balança de poder na Europa. Na prática, o ex-secretário de Estado alinhou-se com o francês Macron, que teme a "humilhação da Rússia" e prefere apaziguar o Kremlin pela cessão de territórios ucranianos.

O presidente americano, Joe Biden - Tom Brenner-1.jul.22/Reuters

Biden, com boas razões, não admite seguir essa receita. Não há motivos para crer que uma vitória parcial russa na Ucrânia produziria um novo equilíbrio estável na Europa. Pelo contrário, tudo indica que a conquista do Donbass ucraniano estimularia Putin a retomar, em futuro próximo, a via militar, persistindo no objetivo geopolítico de reconstituição da Grande Rússia. Na alça de mira de Moscou, estaria o restante da Ucrânia, a Moldávia, a Geórgia e os Estados Bálticos.

A lição valiosa de Kissinger é outra, bem mais antiga. Sob a sua orientação, meio século atrás, durante a difícil retirada do Vietnã, Nixon aproveitou-se do cisma sino-soviético para inaugurar uma parceria realista entre EUA e China, isolando a URSS. A Guerra Fria começou a acabar ali, 13 anos antes da ascensão de Mikhail Gorbachev.

Os EUA de 1949, ano da fundação da Otan, podiam confrontar simultaneamente a URSS de Stálin e uma China paupérrima que experimentava a chegada ao poder de Mao Tsé-tung. O mundo mudou. Hoje, é indispensável inserir uma cunha geopolítica entre a Rússia de Putin, segunda maior potência nuclear, e a China de Xi Jinping, segunda economia do planeta. Trump entendeu isso –mas inverteu os termos da equação geopolítica, buscando um pacto com Moscou.

A guerra de agressão na Ucrânia evidencia que é a Rússia, não a China, a ameaça estratégica à ordem internacional. Xi Jinping flexiona os músculos militares chineses numa esfera limitada à auréola oceânica da potência asiática. Porém, diferentemente da Rússia, a China precisa da densa teia de intercâmbios globais erguida ao longo das últimas décadas. Não por acaso, Xi Jinping circunscreve sua solidariedade à guerra de Putin a limites estreitos.

No governo Obama, os EUA definiram suas relações com a China nos termos flexíveis da "competição" e "cooperação". Sob Trump, a ambiguidade desapareceu, substituída pela noção de uma Guerra Fria 2.0 que se estenderia pelos domínios econômico e militar.

Quase três anos antes da posse de Trump, a Rússia empreendera sua primeira invasão da Ucrânia, anexando a Crimeia e sustentando a implantação dos enclaves separatistas no Donbass. Mesmo assim, conduzido pelo nacionalismo isolacionista, o presidente americano declarou seu desprezo pela Otan e buscou uma parceria impossível com Putin.

"Os EUA estão de volta", proclamou Biden aos aliados da Otan, na tentativa de secar a ferida aberta pelo antecessor. A segunda invasão da Ucrânia colocou seu compromisso a uma prova de fogo, que se desdobra em dois testes. Biden mostra-se capaz de passar no teste militar, forjando uma frente unida com a Europa para sustentar a ajuda bélica à Ucrânia e as sanções econômicas à Rússia. Contudo, fracassa no teste estratégico, insistindo na Guerra Fria 2.0 e, por essa via, soldando uma "aliança permanente" sino-russa.

A sombra de Trump projeta-se sobre Biden. Eis o que revela a presença dos quatro convidados estrangeiros na cúpula da Otan.

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