Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu América Latina

Duas esquerdas na América Latina

Presidente do Chile e eleito na Colômbia romperam com triste tradição

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"É fácil falar de ditadura na democracia; difícil é falar de democracia na ditadura." A frase, do senador Humberto Costa (PT-PE), pronunciada anos atrás, referia-se à nostalgia bolsonarista pela ditadura militar. Mas aplica-se perfeitamente à tradição da esquerda latino-americana que, mesmo inscrita no jogo democrático, segue incensando ditaduras. Gustavo Petro, o presidente eleito da Colômbia, assim como Gabriel Boric, do Chile, sinalizam uma ruptura com essa triste tradição.

Boric marcou um rumo já em 2018, bem antes de eleger-se à Presidência, condenando as restrições às liberdades em Cuba por meio de uma declaração sobre valores: "Os direitos humanos devem ser respeitados sempre, em qualquer contexto e sem nenhuma desculpa. Senão, corremos o risco de ser um reflexo do espelho que criticamos a vida inteira". Semanas atrás, voltou ao tema, referindo-se à repressão contra os protestos de julho do ano passado: "Hoje, há presos em Cuba por pensar de modo diferente e isso, para nós, é inaceitável".

Dois homens usando máscaras fazem gestos de coração com as mãos
Gabriel Boric (à esquerda) se encontra com Gustavo Petro, na posse do chileno em Santiago, em março - Divulgação - 11.mar.22/AFP

O chileno, uma liderança oriunda do movimento estudantil, tem 36 anos. Toda a sua formação política deu-se após a queda do Muro de Berlim. Já Petro, nascido em 1960, ingressou ainda na juventude no M-19, uma cisão nacionalista das Farc que pretendia levar a luta armada às cidades e falava em "socialismo de estilo colombiano". O M-19 foi o primeiro grupo guerrilheiro a negociar a paz, convertendo-se em partido político e participando das eleições de 1991. Petro tornou-se deputado e, mais tarde, senador e prefeito de Bogotá. Na etapa final do percurso à Presidência, começou a falar como Boric.

Petro não chegaria à Presidência sem jogar ao mar o pesado lastro do chavismo. Para a Colômbia, a Venezuela não é um país distante, uma notícia secundária de jornal, mas um foco de política interna. É a outra parte da Grã-Colômbia de Bolívar, a pátria substituta de massas de colombianos fugidos de meio século de guerra doméstica, a origem de 1,7 milhão de refugiados da ditadura chavista, o santuário dos estilhaços das Farc.

Mas Petro foi além, pronunciando-se contra a repressão aos protestos cubanos. Em julho de 2021, escreveu: "Em Cuba, como na Colômbia, impõe-se o diálogo social. As sociedades vivas são as que se movem e se transformam a partir do diálogo e não da autodestruição".

A experiência democrática, por si só, não é suficiente para dissolver a crosta do pensamento autoritário. A prova está no Brasil: PT e PSOL mantêm fidelidade canina ao castrismo, ao regime totalitário cubano e mesmo à fracassada ditadura venezuelana. Lula e Dilma enalteceram Chávez e Maduro. O embaixador indicado por Lula em Havana celebrou os fuzilamentos sumários de 2003.

A esquerda europeia aprendeu a lição da democracia durante a Guerra Fria. Os social-democratas romperam definitivamente com os dogmas marxistas já na década de 1950. Depois, diante da invasão da Tchecoslováquia pelo Pacto de Varsóvia (1968), o eurocomunismo implantou o valor da pluralidade política nos partidos comunistas italiano e espanhol. Na América Latina, porém, a esquerda não seguiu a mesma trajetória.

O caminho evolutivo foi interrompido pela Revolução Cubana. O mito de Cuba, farol e fortaleza do anti-imperialismo, secou as mentes. No Brasil e na Argentina, a crítica inevitável da luta armada nunca ultrapassou a superfície tática para desdobrar-se em condenação ideológica do sistema de partido único. Viver na democracia, elogiar a ditadura –essa duplicidade existencial fixou-se na alma da esquerda latino-americana.

Boric e Petro enfrentarão obstáculos imensos na tentativa de costurar alianças majoritárias para reformar sociedades cindidas pela desigualdade. Mas, numa dimensão internacional, representam uma lufada de ar fresco: o esboço de um polo renovador numa esquerda encarcerada no passado.

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