Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Canções do exílio

Cada um a seu modo, analistas declaram-se estrangeiros na sua própria terra

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"Como libertar as pessoas do cabresto religioso? Do cabresto miliciano? Do cabresto midiático?", indagou a filósofa petista Marcia Tiburi. A pergunta certa é outra: de onde ela tirou a ideia de que os eleitores do candidato adversário são menos livres que ela? Ou: como libertar as Marcias Tiburis da torre da autoproclamada superioridade moral?

Missão impossível, talvez. Segundo o colunista da Folha Alvaro Costa e Silva, "quase metade dos eleitores decidiu que a destruição do país deve prosseguir". Seriam, todos eles, "fascistas", "racistas", "misóginos", "genocidas"? Quando foi que o jornalismo político desistiu de investigar o comportamento dos eleitores, entregando-se ao esporte primitivo de insultar os que votam "errado"?

"Estou num país muçulmano; já não falo português, já não entendo o que dizem", confessa Marcelo Coelho, para quem "os eleitores de Bozo são impermeáveis às notícias sobre a corrupção de seus mitos". O problema do Brasil não é a saúva, mas o povinho que o habita, certo?

Fila de eleitores no dia do 1º turno - Karime Xavier - 2.out.22/Folhapress

Numa vertente de filmes pós-apocalípticos, os humanos saudáveis remanescentes enfrentam, em terras inóspitas, emboscadas de chusmas de deformados pela radiação, que cobrem suas feridas com andrajos. É mais ou menos assim que tantos comentaristas de esquerda descrevem o Brasil das urnas de domingo. Como, nessas condições, persuadir uma esmagadora maioria a enterrar o desgoverno bolsonarista?

Os três analistas mencionados não devem ler essas linhas como crítica pessoal: selecionei-os ao acaso, como ilustrações de um fenômeno cristalizado de alienação política. Eles residem em São Paulo ou no Rio, mas escrevem como se vivessem em Wanderley (BA), onde 97% sufragaram Lula. Nunca ouviram os argumentos de pessoas comuns, que não são fanáticos ideológicos ou religiosos mas votaram em Bolsonaro?

O primeiro turno assumiu a configuração de turno final: o voto oscilou ao sabor da dupla rejeição. Fora do estrato mais pobre, as taxas de rejeição a Lula superam as de Bolsonaro, inclusive na classe média-baixa. Milhões de eleitores de Lula não votaram no mensalão, no petrolão, na bolsa-empresário, no populismo fiscal ou na celebração da ditadura venezuelana —mas contra Bolsonaro.

Do lado oposto, a "quase metade dos eleitores" não votou na cloroquina, no retorno à ditadura militar, na "rachadinha", na devastação ambiental ou na terra plana. Escolheram sua versão do "voto útil": evitar a volta de Lula. Certo ou errado, é um gesto político, não uma profanação moral.

Quando Serra foi batido por Dilma, disseminou-se no universo antipetista a tese de que a escolha majoritária derivava do Bolsa Família. Seria "cabresto", "voto comprado", não a tradução eleitoral de percepções políticas racionais. Hoje, simetricamente, sugere-se que a maioria dos eleitores do Centro-Sul —os reféns de Tiburi, os "muçulmanos" de Coelho— operam como massas de manobra das "forças do Mal". Busca-se, agora como antes, um álibi. No fundo, trata-se de exibir a rejeição a Lula como fruto da irracionalidade, do preconceito ou de pura maldade.

Democracia é o sistema fundado no consenso de que a opinião dos outros é tão legítima quanto a minha. Daí, surgem as implicações da liberdade de expressão e do voto universal. "O Brasil precisa de diálogo e paz", respondeu Lula, agradecendo a declaração de voto de FHC. O pressuposto para as duas coisas é a disposição de ouvir as razões de 43% do eleitorado.

Costa e Silva, Tiburi e Coelho entoam canções do exílio. Cada um a seu modo, declaram-se estrangeiros na sua própria terra: sábios perplexos sitiados por gente que fala línguas estranhas. No fim, graças à rejeição ainda maior a Bolsonaro, Lula provavelmente vencerá. A festa secará a angústia, substituindo-a pelo regozijo. Aliviados, continuaremos sem entender —sem nem tentar entender!— os "muçulmanos".

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