Simone Tebet qualificou como "antidemocrático" o chamado da campanha de Lula pelo voto útil. No seu estilo, Ciro Gomes foi além, definindo-o como "fascistoide". As acusações não fazem sentido: persuadir eleitores a mudarem seu voto é próprio da competição eleitoral democrática. A questão legítima é sobre a utilidade, nesse caso singular, do voto útil.
O sistema de dois turnos baseia-se no acordo implícito de que os eleitores sufragam seus candidatos preferidos no turno inicial e, no turno final, operam por eliminação. O argumento da chapa de Lula é que, devido à narrativa golpista de Bolsonaro, a eleição em curso distingue-se de todas as anteriores: nessa encruzilhada da democracia brasileira, um desenlace decisivo neste domingo (2) cortaria, antecipadamente, a agitação golpista do bolsonarismo.
As sondagens eleitorais recentes parecem indicar algum êxito dessa estratégia persuasiva. De fato, basta um movimento discreto do eleitorado rumo a Lula para encerrar imediatamente a disputa.
Há, porém, um contra-argumento ponderável que se inscreve na própria lógica do voto útil. As pesquisas sugerem que Lula pode ultrapassar, por margem mínima, a marca fatal de metade dos votos válidos. Sem o discurso bolsonarista contra as urnas eletrônicas, ninguém contestaria tal resultado legal e legítimo. Contudo, nesse cenário, a narrativa golpista ganharia verossimilhança entre os cerca de 30% de eleitores dispostos a reeleger o presidente avesso às regras da democracia.
A Grande Mentira —isto é, a falsa acusação de fraude eleitoral— foi fabricada nos EUA, por Donald Trump, com dupla finalidade. Seu programa máximo, fracassado, era deflagrar um golpe de Estado. Já o programa mínimo, exitoso, era isolar sua base eleitoral do debate democrático, nutrindo-a com tóxicas rações de ressentimento. Até hoje, algo como um terço dos americanos acreditam na versão da fraude —e sentem-se alijados do jogo político. Nisso reside a principal ameaça ao futuro da democracia americana.
Nossas eleições, assim como as dos EUA, não terminarão em golpe de Estado. Após a derrota, o futuro político do bolsonarismo depende, em larga medida, do impacto social da Grande Mentira. "No segundo turno, um contra um, eu triunfaria; por isso, eles fraudaram os escassos votos que prolongariam a disputa", exclamará Bolsonaro na hora da proclamação do resultado. A recepção da versão da fraude por uma extensa minoria dos eleitores funcionaria, para a extrema-direita brasileira, como plataforma de uma campanha de contestação da legitimidade do próximo governo.
Bolsonaro gritará "fraude" em qualquer circunstância —como fez, imitando Trump, inclusive após sua vitória de 2018. O ponto, porém, é a verossimilhança de suas alegações. Uma previsível derrota por margem esmagadora no turno final destruiria a credibilidade de seu discurso golpista mesmo entre a maioria dos eleitores que optaram por reelegê-lo. Sobraria, apenas, o núcleo de fanáticos dispostos a acreditar na mula sem cabeça.
Os proponentes do voto útil têm um argumento adicional. Um triunfo neste domingo, explicam, coincidiria com a eleição de todos os parlamentares, que se faz em turno único: os congressistas receberão seus mandatos das mesmas urnas eletrônicas pelas quais Lula terá sido reconduzido ao Planalto. A Grande Mentira, portanto, teria que ser rejeitada pelos parlamentares, em nome de seu próprio interesse.
O raciocínio, porém, é impugnado pela experiência dos EUA. Trump provou que não faltam políticos capazes de reproduzir uma Grande Mentira recepcionada por largos setores do eleitorado. Paradoxalmente, sob a lógica do argumento do voto útil, é mais útil que a eleição seja decidida no segundo turno.
Um detalhe final: para muitos eleitores, nada disso interessa. Eles querem acordar do pesadelo já na segunda-feira, o que tem a sua lógica.
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